Abstract
This paper has as its center of gravity the attempting excavation at selective genealogical instances from the deeper layers underlying the formation of Chinese thought in ancient and classical times. It's my strong conviction that the main cosmological and philosophical tenets of Chinese mind where already preserved by oral tradition since remote times and that it all just underwent an encapsulating process through the emergence of a Chinese logos, what is to be framed between the beginnings of the so-called Spring/Autumn period down to the unification of the empire, during which flourished the “Hundred Schools”and the major philosophical systems of Lao Zi and Confucius. It's also circular in character since the crafting into the major ideas of that world vision is carried on from various angles, in some sort of orbitational modus.
REFLEXÕES GENEALÓGICAS
E CIRCULARES
SOBRE A FORMAÇÃO DO
PENSAMENTO CHINÊS
ANTIGO
Jesualdo Correia
天地不仁,以萬物為芻狗
Céu e Terra não são
bondosos... as dez mil
coisas lhes são como
cães de palha!
Lao Zi, Daodejing, III.
大道廢,有仁義
O Grande Dao declina...
surgem a benevolência e
a justiça!
Lao Zi, Daodejing, XVIII.
Prolegômenos
O período anterior ao
da passagem da dinastia Shang (商朝),
ou Era Yi (殷代),
para a Zhou (周朝),
circa -1056/50, deve ser visto como aquele durante o qual
se edificam os alicerces
da “visão de mundo” matricial da China, a ratificarem-senuma passagem de oitava,
do “céu anterior para o posterior”, quando da virada dinástica.
Será a seguir em
meados dos Zhou, a partir do período conhecido como
Primaveras/Outonos(春秋時代,
-771-476 ), que tem início a cristalização canônica dessa visão,
com a lentaemergência de um logos
sínico em expansão, e o Weltanschauung dele decorrente.
O perímetro
mais contiguo dessa matriz estará itambém sendo
multifacetadamente consolidado,
provindo de outras imanências da tradição oral.
A
partir desse período de amadurecimento discursivo, e que se
estenderá até a total unificação
do país no final do século III A.C, passando irradiantemente pela
época de Laozi/Confúcio
e pela era dos Estados Combatentes -quando tem lugar a eclosão das“Cem
Escolas” ( 諸子百家)
de pensamento-, transcorre, paralelamente, o lento, inexorável
e devastador colapso da ordem dinástica dos Zhou, ocasionado
sobretudo pelas
guerras fraticidas dos Estados-súditos visando supremacia face ao
poder central.
E esse arcabouço
filosófico, epistêmico e de sabedoria civilizacional, então sendo consolidado, provido de
extraordinária gama de matizes, resistirá perenemente ao
interminável sobe-desce das dinastias
subsequentes, mesmo quando dos períodos de prolongada dominação estrangeira,
vindo a sofrer apenas uma transitória transmutação radical de paradigma, quando da
Revolução Comunista de Mao Zedong. Mas então, essa radical mudança da concepção e
manutenção da ordem político-social, da qual o confucionismo, o daoismo e o budismo não
escapariam, estará contuda aberta aos paradigmas
científico-tecnológicos
ocidentais, visto que sua ideologia de Estado lhe era exógena.
Os mitos inaugurais da
China, que a rigor são poucos, se os compararmos com os da Grécia ou da Índia,
portanto, aqueles que constituirão os arquétipos das visões
inaugurais, da cosmogonia primeva,
são mormente referidos como provenientes da ainda mítica dinastia Xia, e falam das
peculiaridades únicas daquela antiquíssima cultura, introvertida e eminentemente agrícola.
É nesse solto, mas linguistica e geograficamente coeso conjunto de comunidades, as “cem
famílias” (百家,
baijia ), para fazer uso de antiga expressão, que uma riquíssima tradição
oral arregimenta, sedimenta e compartilha as conquistas cognitivas, sejam aquelas provindas
da observação da natureza, sejam ainda as da fenomenologia do seu universo psíquico.
De certo que já emergirão, nesse período pretérito, algumas das figuras emblemáticas,
que atravessadas por visões superiores, e imbuídas dos insights outorgados aos poucos,
virão a se destacar sobremaneira no panteão. Mas, ao contrário
das idiosincrasias dos deuses
e divindades gregas, romanas ou hindus, as entidades chinesas
incorporam quase que tão
somente atributos relacionados com a sabedoria, sendo modelos
prescritivos para a ação
do homem sobre si mesmo e sobre a sociedade. Poucos são os mitos
inaugurais chineses, se
algum, que tratem ou incorporem elementos a lidarem prosaicamente
com a frivolidade ou
volubilidade humanas. O pragmatismo concreto (sic) a mente chinesa já
se faz ali presente.
Esse pragmatismo será
revestido, mas também ensejado, pela lingua falada através de
diversos dialetos, assim
como pelo seu caráter monosilábico, de construções sintáticas
compactas, minimais,
parcimoniosas, postas a seguir, com a emergência da escrita, em
frases
quase aforísticas,
agrupadas como se fossem blocos independentes de unidades semânticas
que entre si formalmente
são aproximadas para a construção do sentido. A escrita que
servirá a essa lingua,
inicialmente pictográfica, crescentemente alusivo-ideográfica
e, a seguir, combinando
caracteres titulares de uma lista de radicais com outros
independentes que
respondem total ou parcialmente pela parte fonética, constitui, sem
dúvida alguma, um dos
monumentos da genialidade e originalidade da mente chinesa.
Ainda na época de
Confúcio, predominavam variantes da forma arcaica desses caracteres
ou
logogramas e, quando da
unificação do país, em – 221, Lisi (李斯),
Primeiro-Ministro do
Imperador, haveria de
depurar, ideologica e lexicograficamente, todo o repertório
existente,
reduzindo seu total a
3.300; cerca de 400 anos depois, eles já eram mais de7.000 e
alcançarão a fabulosa
casa dos 40.000 em 1716, quando da publicação do monumental
dicionário Kangxi.
Costuma-se considerar, contudo, que 32.000 eram puras monstruosidades
arcaicas, já então em
absoluto desuso.
São dos cascos de
tartaruga (甲骨文,
jiaguwen), e dos variados tipos de bronzes da dinastia
Shang, que dispomos dos
primeiros registros de ritos e rituais palacianos, das libações e
sacrifícios, asim como
de um repertório de outros registros que revelam um povo
cerimonial,
praticante dos cultos aos
ancestrais e provido de uma mente holística em seu esforço de
homolação com a ordem
cósmica e a da natureza.
Esses documentos
constituem ainda legado incipiente, inscritos ocasionalmente como
epígrafes, embora já
existissem, paralelamente, compilações literárias de diversos
tipos,
preservadas apenas
oralmente. Mas será tão somente com os monumentos literários do
período
Primaveras/Outonos (春秋时代)
c. -770-472) que passamos a ter um corpus
inaugural das coletâneas,
já em avançada fase de codificação; uma série de textos-fontes,
dentre os quais o Shiji
(詩
經), Anais Poéticos, o Shuji (書經),
Anais Históricos, o Zuozhuang,
(左傳),
Crônicas da Margem Esquerda, e, não menos, as várias descrições
dos Cerimoniais e
Etiquetas, o Lijing
(禮經),
verdadeiros prontuários civilizacionais, com base nos quais
muito da construção
filosófico-moral confuciana e, de resto, da China como um todo,
será erigida. Confúcio
fará amplo uso desses textos, como pensador e homem de Estado,
em sua cruzada filosófica
pelo soerguimento moral de uma dinastia que lentamente se
esfacelava, atravessada
por guerras intestinas cada vez mais incontínuas.
O Yijing... e o Dao
Mas uma outra fonte,
absolutamente vetorial, estivera orientando, formatando e
atravessando todo esse
arcabouço acima sumariamente descrito, e ela permanecerá a
grande matriz do
referencial cognitivo da mente chinesa: o Yi Jing, ou Zhou Yi (易經/
周易).
Texto oracular, vade
mecum por excelência da sabedoria chinesa, nessa referência-fonte
articula-se a dialética
visão de mundo própria ao universo sínico, seu conhecimento
ancestral
dos fatos da agricultura,
dos assuntos do mundo social e do psiquismo humano. Dela
foram e são extraídas
as receitas táticas/estratégicas visando à eficácia existencial
nos assuntos de foro
íntimo e da vida social. Suas metáforas, concretas e mágicas a um
só
tempo, refletem os modi
cognoscendi mais próprios do gênio da raça, e o proprio
Confúcio
apenas tarde em vida se
considerará maduro para elaborar comentários elucidadores sobre o
texto inaugural, seco,
quase-críptico e sortilégico.
Segundo o mito, o
proto-sábio Fuxi (伏羲),
em momento de divina inspiração, ergueu a
cabeça para o céu e
compreendeu a vastidão inefável do princípio cósmico criador,
yang,
abaixou-a depois e
contemplou o que dela na terra adveio e a seguir olhou para os
homens,
fruto das duas dimensões.
Um trigrama foi então visualizado e, dessa visão, ternária,
haveria de ser concebida
uma óctupla representação alternante, de linhas inteiras e
partidas, o revezamento
criativo entre dois princípios antagônicos e complementares:
yin/yang
(陰
陽,) cuja imagem emblemática é o esférico
Taiji (太極).
Assim sendo, a
partir do binarismo de linhas inteiras e partidas, aquela concepção
original
atribuída ao mítico
Fuxi constituirá o ponto de partida do Yijing, inicialmente como
trigrama
e, apenas bem mais tarde,
quando sofre um aggiornamento importante, com o lendário rei
Wang, do início da
dinastia Zhou, como a disposição dos Oito Trigramas,
expandindo-se
posteriormente rumo ao conjunto de 64 hexagramas tal como hoje o
conhecemos.
Mas, permeando esse
esquema de percepção cognitiva de mundo, cujas variadas facetas
são representadas pelo
Zhou Yi, pelos cânones pré-clássicos, pelo daoismo, pelo
confucionismo
e pelas “Cem Escolas”,
existe um princípio norteador ainda maior, uma luz tênue e intensa
que se projeta iluminando
a tudo e todos: o Dao.
O conceito do Dao (道),
em sentido amplo, representa a visão ancestral da sabedoria chinesa
quanto à ordem própria
das coisas, das coisas do céu e da terra. Algo do Rta hindu
ou do
kosmos grego. Cabe
ao homem intuir/captar/visualizar o movimento e sentido de cada uma
das
situações de uma
míriade de manifestações dele provenientes, e ajustar-se a ela.
Tal postura
intuitivo-contemplativa,
mas também operacional, revela de uma epistemologia
rudimentar, profundamente
saudável, onde as coisas do cosmo e da natureza constituem como
que “coisas em si”,
que com o homem interagem – não com o seu ego ou suas fantasias
e idéias! – e ele deve
apreender a “ascultar-lhes” o sentido e as tendências, de modo a
evitar as
perigosas interferências
e projeções cognitivas provindas das dimensões egóticas.
Se o Yijing é o logos,
em status nascendi, da visão chinesa do mundo, o Dao é o
grande
princípio intuitivo que
a tudo deve nortear.
Tentar retraçar a
genealogia do conceito seria infrutífero, mas o caracter que o
designa,
e que significa em sua
eloquente simplicidade “caminho” ( constituído pelo radical
shou,
cabeça, e pelo fonético
cum significado zho, cujo sentido original é o de
“andar e pausar”),
parece já ser produtivo
nos bronzes da passagem dinástica dos Shang para os Zhou,
quando ocorrera uma
mudança dinástica na plena acepção do conceito clássico chinês
de revolução ( ge
ming革命):
a extirpação, a retirada, a destituição do Mandato Celestial
(tianming天命)
do soberano sucumbente, e a concomitante investidura do novo rei com
todo
um leque de
substituições, desde as titulações oficiais ao linguajar
cerimonial, no calendário,
ritos e rituais, assim
como nos simbolismos das cores imperiais.
O Dao, esse
conceito-visão de mundo íntimo da alma chinesa, uma vez transposto
para
a polaridade geométrica
das linhas ying/yang, inteiras e partidas, da relação ser/não ser
(you/wu) - e das
subsequentes “dez mil coisas” (wan wu) daí decorrentes-,
presidirá
igualmente a visão
tripartite céu/homem/terra, assim como o modelo de trânsito
mão-dupla
dos universais
/particulares (visão micro e macro que se entrelaçam). Assim sendo,
se
no caso da Índia, a
forte “pegada” metafísica, visando o Absoluto ou o Nada,
impregnou
a postura filosofal de
maneira radical, em níveis diversos, no Império do Centro ela
tendeu a estabelecer um
compromisso entre a bonheur ôntica, organicamente
estruturante,
com os imperativos de uma
metafísica moderada. Tal dimensão é presidida e coordenada, em
termos filosofais pela
convergência e alternância de suas duas correntes tidas como
maiores, o daoismo e o
confucianismo, assim como pela sabedoria naturalista provinda
da vida do campo, a
lembrar-nos Hesíodo.
em diante, na esfera
social, ou do zhenren (真人),
o homem perfeito do daoismo, na vida
reclusa, engloba o telos
do objetivo superior do homem
que pratica o autoconhecimento e se
aprimora
interna e externamente. Para tal aperfeiçoamento, existe o imenso
arcabouço de
receitas
de práticas psicosomáticas, da alquimia interna (neidan內丹)
e da medicina
herborialista.
Como pano de fundo, tal como a esfera fictícia que os praticantes do
Taijiquan
(太極拳)
manuseam, estará sempre o sentimento do Dao, como uma luz
cósmica
perpassante,
como semeion
omnipresente.
Todo esse caudal
espraia-se em torno e permeia o universo mental dos sábios, dos
artistas,
dos eremitas e dos
“burocratas celestiais”, os mandarins, palavra aliás criada
pelos jesuitas
portugueses em boa hora,
ou seja, os planos esotéricos e exotéricos. A eternamente
recorrente influência
dos ideais confucianos exigirá o conhecimento dos cânones por
parte desses
funcionários, quando dos famosos Exames Imperiais, os quais servirão
de parâmetros no
desempenho de suas funções, enquanto que, internamente, numa
dimensão ou outra,
estarão também atuantes aqueles saberes esotéricos sob a égide
da inefável omnipresença
do Dao. Não raramente, sairão de seus quadros importantes
letrados (rushi),
assim como destacados pensadores e artistas.
O daoismo, que
absorvera proficuamente daquele manancial, o dimensionará
sobremaneira e o
Daodejing, assim como os escritos do Zhuangzi (莊子)
e do Liezi (列子),
estando por eles
impregnados de corpo e alma, fazem uso farto em várias releituras.
Havendo sido forjado, por
conseguinte, desde os primórdios, com tamanha simplicidade
e coerência, esse
Weltanschauung sínico, essa eficaz sabedoria, pouco espaço
ensejaria
para a eventual
multiplicação de fabulações cosmogônicas, de politeismos ou
dogmáticos
monoteismos, ganhando com
isso o processo de sedimentação de sua rationale em
precocidade.
A fim de prover aqui
um exemplo ad hoc, ou seja, do quão saudável e concreta
esta rationale,
cabe citar o caso de um texto como o do Sun Zi Bingfa (孫子兵法),
discurso coeso, tornado
cânone em sua área, provido de uma logicidade simples e
insofismável, assim como
de requintada, mas concreta, psicologia, amparada pela solidez
ampla e variada dos
exemplos! Um texto infinitamente superior ao de Clausewitz, e que o
antecede em 2300 anos! E
nesse texto, extraordinário, é possível inferir, pressintir e
“quase
tocar” na presença do
conceito-guia, o Dao, que preside dialética textual como se
fosse uma
aura.
Acúmulo ou
esvaziamento dos conhecimentos?
Ontologia versus
epistemologia
Hu Shi (胡適),
em sua seminal, embora algo precariamente elaborada obra sobre o
desenvolvimento da lógica
na China antiga (vide bibliographia), usa como ponto partida da
história da lógica na
China um episódio filosófico que talvez caiba aqui mencionar.
Assim é que Zhu Xi
(朱熹,1129/30-1200),
da extraordinária Dinastia Sung (宋朝),
afirmava, nas pegadas do
confucionismo, que em tudo existe uma razão e que se a mente
se projetar continuamente
sobre as razões das coisas, ela poderá ampliar a consciência
cognitiva infinitamente.
Tal era a sua postura filosófica. Séculos mais tarde, o importante
pensador do
neoconfucianismo (宋明理學,
songminglixue), Wang Yangming (王陽明,
1472-1529) irá se
rebelar contra esse dispostivo lógico.
Para Wang, esse
acúmulo cognitivo progressivo é prolixamente pernicioso e
dispersivo,
o importante sendo
retomar o esvaziamento que reconduza o homem a uma espécie de mente
original (benxin
), ao conhecimento intuitivo inato ao ser, evitando a pulsão
acumulativa
que, se favorável aos
saberes externos, não o é ao bem-estar humano. Tatava-se, portanto,
de re-despertar esse
potencial. Um neoconfuciano fortemente daoista e budista!
Quando Zhixi e Wang
Yangming decidem, a uma distância de mais de 300 anos, que
discordam quanto à
modalidade do tipo de razão neoconfuciona que advogavam, eles
estarão, contradictio
in adjecta, concordando ao discodarem, com algo que é, uma vez
mais,
bastante peculiar à
mente chinesa, a saber, o caráter psicológico, radicalmente
ontológico, e
profundamente humanistico, de suas posturas e objetivos filosóficos.
Wu (物),
coisa, que é o termo do
neoconfucionismo, e shi (實objetividade
concreta, pragma, na sua
acepção (latina)
constituem a centralidade do objetivo da vida e da filosofia, segundo
Wang, e
não os procedimentos
lógico-epistemológicos a rigor, ou ainda observação acumulativa
da
natureza, physis.
Uma vez mais atuou então o caráter pragmático da mente chinesa,
retornando aos
fundamentos e se possível
conciliando opostos.
Essa digressão foi
feita aleatoriamente de modo a ilustrar certa tendência
recorrente no pensamento
chinês, o que enseja, eo ipso que recoloquemos a famosa
pergunta
de Jacob Needherland, o
sinólogo e editor da monumental History of Science and Technology
in China: por
quê a China não continuou avançando em seu
pensamento científico, de modo
a seguir a frente do
Ocidente, ela que fora precursora em tantas áreas? O que fez com que
em certos períodos de
sua história científico-tecnológica um retrocesso ou estagnação
freasse
o avanço que estava à
mão, como no caso do século XV, e que certamente a teria feito
superar o Ocidente quando
do ímpeto do Renascimento? Ora, quando um renomado
neoconfuciano, chef
d'école e homem de Estado,
assume tal postura ontológica, exatamente
no período no qual se
situa a pergunta de Needham, há de se pensar a respeito. Seria
aquela
a grande tendência
epistêmica do final da Dinastia Ming, a ser criticada mais tarde
por vários pensadores
pela apatia que propiciaria a conquista manchu? Teria a postura
de Wang Yangming
tornado-se hegemônica no Zeitgeist da época? Mas a tentativa
de
resposta aquela
importante questão de Needham requer a consideração igualmente
de outras alternativas e
fatores.
Assim, depreende-se
pois que encontrava-se incubado na epísteme dessa sabedoria um fator
de ewige Wiederkehr,
que irá, em certos momentos de sua história, retardar não apenas
o
avanço científico, mas
também a sua eficácia política preventiva diante de inimigos
externos,
tornando a China refém
de seu próprio legado epistêmico-arquetipal. É como se a China
houvesse se decidido por
permanecer eternamente daoista e confucianista à la fois,
mesmo que,
parodiando aqui a máxima
de Nietzsche em relação a Hegel, nunca houvesse existido
um Laozi ou um Confúcio!
Tal índole, inclinada
no plano político à manutenção no poder de sua classe dirigente,
não poderia propiciar
àquela inquisitiva mente um deslocamento contínuo em
direção à ciência,
avanço que, ao acarretar inovações tecnológicas, poderiam
precipitar
uma mudança de
mentalidade e, consequentemente, o potencial rompimento com o
status quo, com
com os elos do encadeamento da estrutura social. Contribuindo para
tais entraves, havia de
certo, não menos, os paradigmas cognitivos, tais como a obstinada
tendência a criar uma
hermética, embora ampla, correspondência entre o micro e o macro,
a partir de um esquema
rígido de conjuntos mais numerológicos do que factuais: os cinco
elementos, os cinco sons,
os aromas etc., etc. E então, esse extraordinário potencial que
não precisou tolher ou
sacrificar pensadores por força de dogmas, ou nas fogueiras de uma
Inquisição, teve em si
mesmo o freio que o conteve rumo aos avançar tecnológico.
Fontes, estemas
Embora bem mais
provido de registros históricos, bem confirmados, e herdeira de um
rico legado de anais, a
China se depara por vezes com penoso dilema filológico da veracidade
dos dos estemas, para
sequer falar de edições princeps, pois seria aqui, sem se tratando
do período clássico,
quase que de uma fantasia. As interpolações são legião. Assim
sendo,
certezas absolutas
inexistem quanto à integralidade e veracidade das autorias dos
textos,
sendo tal válido tanto
para aqueles atribuídos a Confúcio, Laozi, Zhuangzi ou Hanfei,
até
os clássicos mais
recentes da dinastia Ming, que os chineses, à exemplo de como se
posicionam em relação
às cópias em arte, consideram questão secundária. Tal como na
India,
o saber é na China visto
sobretudo como um todo que segue se acumulando, absorvendo e
irradiando, não
constituindo a questão da autoria de modo algum o aspecto principal,
não obstante o vasto
número de autores emblemáticos cujos nomes e personalidades geraram
escolas.
A sabedoria e os
saberes na China sempre foram iminentemente voltados para uma paideia
nacional, para a crença
profunda de que o conhecimento, seja técnico ou poético, deverá de
alguma forma contribuir
para o ideal de harmonia com o Dao maior. A longa história
da China tem testemunhado
a saciedade os grandes momentos de crise nacional, seja
quando dos processos de
caotização da ordem social - colapso dinástico,
invasão e subjugação
estrangeira-, por um lado, ou de crises epistêmicas, por outro, ou
ainda de crises de ambos
os tipos conjudaos, quando ocorrem como que deslocamentos
de eixo, excessos de
carga sobre as estruturas vigentes, estancamento do dinamismo
interno.
Em geral, tais momentos
são precedidos de prolongada apatia, secular não raro, e passaram
a serem vistos e
estigmatizados por um orientalismo romântico como característicos
de
uma 'China Imutável”.
O enfraquecimento da
virtude dinástica, por fatores endógenos ou exógenos, e o
esmaecimento da dinâmica
na interação das idéias, retardando assim a permanente necessidade
de “retificação dos
nomes” (zheng ming正名),
vai provocando crescente “perda” de
momentum e o
marasmo/colapso que se segue será duradouro. Mas, em perfeita
concordância com a visão
chinesa da importância da germinação em
sua fase invisível ( ou
à do primeiro estágio de manifestação do dragão, quando ainda
oculto), nessa estagnação
já abundam as sementes do novo, que se movem lenta e
pachorrentamente,
adquirindo lenta preponderância, como se fossem as peças do weiqi.
E
então, subitamente – mas nem
tanto - têm início as eclosões de febril entusiasmo
revolucionário
ou criativo... o dragão sai da invisibilidade para alçar seu
quadrifásico
vôo...
a fênix renasce.
Representação,
idéia... forma xiang (像)
e o logos emergente
Dentre os conceitos
nucleares, imanentes, provindos da matriz do Yijing, cânone como já
vimos, inicialmente
apenas um esquema binário de percepção oracular da realidade,
mas já fortemente
filosófico em seu potencial, o da “imagem”( xiang),
posteriormente
em alternância com xing
(形),
forma, da imagem-metáfora, alegórica, merece especial
destaque.
Assim, como sinônimo
de representação (Vorstellung) em termos filosóficos, o
estudo
de sua importância ocupa
posição central em vasto número de exegeses do cânone,
muito particularmente na
obra do genial Wang Bi (王弼),
que tanto em seu Comentário
sobre Laozi,
quanto em seu canônico Comentário sobre o Zhouyi, ocupa-se
detalhadamente
com essa questão.
Portanto, o material cognitivo a ser extraído. pelo consulente,
das “imagens-metáforas”,
por meio de analogias e de paralelismos, remete,
ultima ratio, não
às abstrações filosofais, mental constructs típicos da
filosofia, mas aos
sentidos (yi意)
captados por insights propiciados pelo arcabouço de
experiências
empíricas (sic),
advindas do longo acúmulo das situações existenciais,
na natureza e na
sociedade e no universo psíquico, que camada após por camada vão
sendo
compiladas pelos sábios.
A metáfora que é
então “trazida à luz” - phainein dos gregos – quando
da consulta,
curta e direta, arcaica
ou ainda contemporânea, será explicitada brevissimamente
por um
comentário/julgamento bem à feitio da sintaxe do chinês arcaico.
Mas essa metáfora
é forma, do
domínio das representações, sendo agora sua força impactual
coadjuvada pela
palavra. O conteúdo que
a gerou ( seu sentido oculto, a ser por ela “trazido a tona” ),
pertenceu
também ao domínio da
experiência genuinamente ôntica do ser, de seus pratyaksha(s),
percepções intuitivas
imediatas.
Nunca será
suficientemente demasiado insistir nessa dicotomia de planos, que a
rigor
constitui o problema
nuclear da filosofia, a saber, a permamente “diferença” entre
a vivência fenomênica,
instantânea, e portanto cognitiva do plano ôntico, por um lado, e
suas
possíveis
correspondências no plano das imagens, das idéias, das ontologias e
mesmo
epistemologias.
A imagem da água
represada que não escoa, propicia uma cesta de informações e
analogias,
sobretudo daquilo que é
contrário ao processo vida, ou ainda à falta de dinâmica, e
por conseguinte
estagnação, de uma dada situação social, seja do próprio império
ou
do mundo pessoal do
consulente. A imagem do pássaro que voa, ou que sucumbe, evoca
leituras auguriais; a
folha que flutua ensina sobre o transitar desimpedido; a pedra que
rola
montanha abaixo,
adquirindo velocidade, fala eloquentemente de empuxo, de momentum
dinâmico, de força em
expansão, de preponderância, e esse ideograma shi (勢)
( título do
quinto
capítulo do Sun Zi Bingfa),
é constituído pelo radical li,
força, por wan,
objeto roliço,
um
duplo tu de terra
separadas por ba,
oito, cujo sentido original era o de rachar, apartar
por
impacto.
Tais procedimentos imagísticos, que revelam dos processo de
apreensão e de representação
da
realidade serão cada vez mais elaborados pelo logos
emergente, em parte
beneficamente,
por expandir a explicação, em parte prejudicialmente, devido à
superposição
de mediações verbais e perda da força original que detinham. Tal
fenômeno
ocorrerá
com vários outros conceitos, muito particularmente o do Dao,
como veremos
mais
adiante.
Em seu processo de
sedimentação e expansão, o logos chinês, e logos de
fato, na dupla
acepção grega do termo
– a de palavra, e a de discurso/exposição de uma epísteme,
de uma rationale –
eclodirá pleno no século VI, sobretudo com Laozi e Confúcio,
para ingressar nos
séculos subsequentes pleno de vitalidade, fazendo mil flores
desabrocharem
através das “Cem
Escolas”. Surgem também os rudimentos formais de uma Lógica com
墨子
( Mozi), tido como contestador e rival da
escola confucianista, a ser ainda mais
desenvolvida no mohismo
posterior. Banida em parte pelos Qin, mas retomada a partir dos Han,
e mais plenamente
resgatado quando da penetração do budismo, essa corrente é
considerada
como emblemática das
origens do pensamento lógico chinês.
De certo que o impacto
causado mais tarde pela epistemologia budista, seja através
da radical dialética
negativa da vertente Madhyamika, seja sobretudo pela
lógica/epistemologia
do Yogacara, (cuja
vertente mais psicológica foi adaptada ao espírito chinês pelas
traduções de
Xuanzang (玄奘
), haveria de produzir efeito sobre aquilo
que poderíamos chamar de
um sistema epistemologico
chinês em sentido mais amplo. Mas tal influência budista só
haveria de ocorrer a
partir do século III da Era Cristã (e sobretudo nos séculos VI e
VII), não
sobrevivendo muito além
da dinastia Tang, ainda que residual e subrepticiamente presente
nas dinastias posteriores
e algo ecoante até hoje. O caráter sui generis das
peculiaridades
idiosincráticas e
sintáticas da lingua representaria então certa barreira à absorção
de idéias
exógenas, sendo a famosa
querelle filológica dos Geyi
(格義),
“equiparação dos sentidos”
em torno dos problemas de
tradução dos textos budistas provenientes do sânscrito,
testemunha eloquente de
tal fato.
Mas a assertiva quanto
à limitada transponibilidade de sentidos da lingua não deve
ser de modo algum
postulada em termos absolutos, visto que, na era atual, ocorre em
chinês
moderno uma desobstruída
transposição das idéias e conceitos ocidentais, sobretudo as
científicas, agora
provido de ampliada sintaxe e do recurso de dois ou mais caracteres.
Muitos conceitos
científicos modernos adquirem até mesmo maior expressividade
quando de suas traduções
na lingua atual, embora na área literária, a tradução de um
Finnegans Wake
tenha constituído uma questionável, temerária, extremamente
hercúlea
prova de certas
intradutibilidades. Mas assim o foi na tradução japonesa, tanto
quanto
em outras linguas!
A propensão à
exegese, à ortodoxia e, por conseguinte, à escolástica à la
chinoise, passou a
cristalizar-se como outro
traço marcante do pensamento chinês, latente no auge do período
clássico e adquirindo
plena expressão a partir da dinastia Han. Dispor, organizar,
cronicar, gerar
taxonomias, ainda que heterodoxas, prescrições, adágios dos
cânones ou
da sabedoria popular,
prudentemente conceitualizar , enfim, produzir minimalmente
um quantum
polifacetado de cada um dos saberes, com imagens operacionais de
sentidos,
se possível, seja pela
pintura ou pelos símbolos.
Da ampla visão de
mundo proporcionada pelo Yijing e pelos cânones filosóficos da era
clássica, ratifica-se
pois um modus cognoscendi multifacetado, que irá
caracterizar, servir
direta ou indiretamente
de parâmetro para a toda a produção intelectual posterior. E tal
ocorrerá ao longo de
cerca de três milênios, não obstante a episódica interferência
de novas
epístemes., como as do
pensar científico do Ocidente, levadas primeiramente pelos
jesuítas,
no século XVI, e
irrestritamente a partir da Revolução de 1911. Tudo será desta vez
inexoravelmente
absorvido. Mesmo no decurso da Revolução Comunista, quando ocorre
um
completo renversement
de la base, os modi cognoscendi estrangeiros
continuam sendo
incorporados,
à exceção das idéias políticas e ideológicas que não
estivessem de acordo
com o
credo marxista-maoista. Mas o substrato anterior, agora profundamente
atacado,
não
desaparece por completo, e o próprio Mao praticava a poesia e
a caligrafia nas horas
vagas, lia os romances
clássicos e bebia sofregamente de variado número de textos
canônicos, dentre os
quais o Sunzi Bingfa.
Esse modus
cognoscendi chinês comporta, não menos, peculiaridades tais
como um forte
senso de medida e
harmonia, de equilíbrio das partes constitutivas de qualquer
realidade,
atravessada que é por
fluxos sutis de aspectos contrários ou convergentes, de passagens e
mutações. A alternância
entre o agir e o não-agir ( wei/wu wei 為無為
) ou do agir orientado
por um prontuário de
princípios-guias (li理),
ensejou no ethos do povo uma incômoda
contradição: por um
lado, a mente chinesa tende filosofalmente à não-ação, por força
inerente de sua postura
de ascendência daoista, pelo receio de interferir no dao
próprio
das coisas ( o famoso wei
wuwei), e, por outro lado, o seu gênio criativo impõe-lhe o
imperativo da atividade
produtiva e da eficácia na ação.
Saberes, e mudanças
de paradigma
Saber, saberes e
sabedoria constituem um pacote tripartite dentre os ideais do homem
chinês, o qual jamais
outorgou exclusivamente à mente/intelecto a primazia na
obtenção de
conhecimentos, que de resto deve assimétrica heterodoxa. Do
caracter
composto (huiyi)
zhi (知),
saber, deriva zhi
(智),
sabedoria, com o yue
de “dizer”
subposto a zhi (
“conhecer”, “saber”): o saber superior que advém de um
insight, e
passa a ter esse sentido
em Laozi e Confúcio, como variante da acepção antiga que
implicava a idéia de
habilidade, capacidade. Ocorrera ali uma sutil passagem semântica,
como a indicação de que
o “saber-fazer“, a habilidade do conhecimento,
sempre fora de crucial
importância para a mente pragmática chinesa.
Não caberia aqui, por
restrições de espaço, adentrar os labirintos do universo de
correspondências entre
os planos do macro e do micro, das interrelações complementares
entre os elementos e os
astros, entre as cores e os números, entre os sons e os odores,
tal como tão fartamente
ocorre sob o modus complementarista dessa visão de mundo.
Retornando ao nosso ponto
de partida, vimos que esse dispositivo cognitivo sofrerá
uma série de choques, de
passagens de oitava, aggiornamenti de paradigma, à altura do
fim da era dos Estados
Combatentes, quando da implantação de uma nova ordem imperial
sob o novo Imperador
Amarelo (Huangdi) da família Shi, do Estado de Qin:
Qin
shihouangdi (秦始皇帝
).
Com o colapso do
sistema feudal, os resíduos adjacentes da antiga religião agrária,
com sua plêiade de
divindades da natureza, de oferendas e invocações a alcançar um
summum bonum, a
boa colheita, à manutenção da ordem própria do mundo, em harmonia
com o Dao, serão
agora gradativamente reciclados por um um novo panteão
intimamente associado
pela emergência do daoismo religioso (daojiao).
Tratava-se de uma
passagem semelhante em magnitude àquela que ocorrera dos Shang
para os Zhou, uma virada
dinástica profunda liderada pelo rei do Estado Qin, e que
que caberia à dinastia
imediatamente subsequente, a dos Han, ratificar, aprofundar e
ampliar o espectro.
Respaldado em parte
pelo daoismo dito filosófico (daojia) e refutando in totum
ferozmente
o confucionismo, a
doutrina de Estado do Legismo, (fajia 法家),
via nos herdeiros
de Confúcio e das
escolas por ele influenciadas como perniciosos e retrógrados
às necessárias reformas
a serem implantadas pela nova ordem dinástica. Se o Legismo
passa a deter a
supremacia do pensamento político que se implanta, a ontologia
daoista
também se expande, como
contrapartida à cultura dos letrados que respaldava o
sistema feudal agora
sendo abolido. O daoismo dito religioso explorará doravante
ampla e sistematicamente
as realidades do microcosmo no corpo humano, visto como
uma imensa topografia,
provida de campos de força, reservas energéticas, canais,
“palácios”,
centros de gravidade. E
este vasto universo interior será a partir de agora povoado
por um novos grupos de
entidades e divindades, a serem nutridas, cultivadas e reverenciadas.
As práticas
psicosomáticas, num plano superior, visam o retorno a uma espécie
de status
embrionarius da respiração – a imagem do recém-nascido é
evocada -, à
implementação de dietas
regeneradoras – sobretudo os cereais, as carnes e o
vinho são rejeitados, em
favor de ervas e raízes – rumo ao corpo imantado desse yogin
daoista, o daoshi, que
almeja se tornar não apenas um zhenren (um ser inteiro e
verdadeiro),
mas também um xian
(仙),um
imortal, cujo ideograma é composto de montanha e homem.
Para tal lograr, o adepto
deverá seguir um prontuário de práticas esotéricas e ritos
iniciáticos,
que essa tradição
daoista seguirá profusamente elaborando e sedimentando.
A emergência do
daoismo é agora agora irreversível, mesmo que o confucionismo e
outras
correntes proscritas
venham a ser em breve reabilitadas, já sob os Han anteriores.
Portanto Han Fei
(韓非),
que, a rigor, representava originariamente uma corrente depurada do
confucionismo, contra o
qual ele se rebelara, havia sido não menos profundamente
influenciado
pelo daoismo, e constitui
o pensador mais emblemático da passagem dos Zhou
para os Qin e, ato
contínuo para a longa dinastia dos Han. Do estoicismo de Mo Zi, ele
retirara também os
elementos de lógica assim como de sofística e passara a incarnar,
às vesperas da
unificação do país, o profundo desideratum do inconsciente
coletivo chinês
no sentido de estabelecer
uma ordem, ordem jurídica e social, no seio de uma
nação que se
autoflagelava já de longa data. Mas Hanfei, apenas bem mais tarde
conhecido como Hanfeizi,
haveria contudo de cair em desgraça, bem no feitio chinês, ou seja,
por força das intrigas
palacianas. No seu caso por obra e graça de Lisi, futuro poderoso
ministro do imperador
Qin; ele se suicidará na prisão em -233, sem haver por conseguinte
visto se consolidar como
como doutrina de Estado sua filosofia política.
O pensamento de Han
Fei era contudo bem mais profundo e rico do que aquilo que
dele seria aplicado, sob
a forma de um legalismo ordenar, seco e despótico, caracterização
essa
a ser explorada seclum
seculorum pelos seus detratatores confucianos.
Talvez possamos
descrever la nouvelle ordre que emerge sob a imagem de um
típico
bronze tripé chinês, um
pé sendo o do severo sistema de leis (fa 法),
o segundo o de
uma filosofia
administrativa visando à eficácia (kong-yong) nos assuntos do
Estado
(shu術)
e o terceiro o poder preponderante (shi 勢)
da legitimidade celestial e terrena do
imperador. A alma e o
espírito que presidiam esse novo Zeitgeist eram o da
renovação radical.
Urgia depurar a nova
nação daquilo visto como o pneuma da ordem anterior, feudal,
desfechar-lhe um golpe
mortal, o que seria feito com decretos de banimento e perseguições,
assim como com a
apreensão e queima dos escritos de variadas escolas.
Desde cima, o
Imperador/governante precisa “ser visto” como aquele que rege de
acordo com os princípios
mais elevados e sublimes da sabedoria, e em concordância
com um conjunto de leis
“imparciais”, investido que ele é pelo Mandato Celestial
(tianming
天命)
e de sua virtude ( de 德).
Tal virtude, ele deverá fazer emanar sobre os súditos, trazendo
idealmente paz e harmonia
a tudo que se encontre no perímetro do reino (tianxia天下).
Enquanto esse momento
de unificação político-territorial da China, em -221, tinha
também lugar a
penetração de novos conhecimentos vindos do exterior, através das
rotas comerciais,
trazendo aportes, ainda que fragmentadamente, dos saberes das
civilizações
iraniana e indiana, mas
também grega, em áreas, entre outras, da astronomia e
matemática. O pensamento
chinês que vinha se estruturando a partir do período
Primaveras/Outonos,
estendendo-se irradiantemente por todo o período clássico,
torna-se
cada vez mais receptivo a
tais influências, o que adquirirá plena força com a penetração
do budismo à altura da
passagem dos Han anteriores (qian Han前漢)
para os posteriores (hou),
no século III da Era
Cristã.
As taxonomias
típicas da China antiga, bizarras para a mente normativa ocidental,
em termos dos arranjos
das categorias, propensas que são às correspondências entre planos
e dimensões que fogiam à
nossa logicidade de ascendência aristotélica, tais como o variado
leque de correlações,
factuais ou micro e do macro, esquemas que têm por referencial um
universo de mônadas
deveras distintas daquelas leibnizianas e que são ordenadas em
função
dos elementos internos de
suas eficácias... devem ser aqui referidas emblematicamente como
um dos traços marcantes.
Essas peculiaridades taxonômicas foram motivo de um belo texto
de Jorge Luiz Borges
devido à bizarreria que o escritor via nelas.
Céus anterior e
posterior
Na passagem do “céu
anterior”(xiantian) dos Shang para o “posterior”, na
dinastia
Zhou, concomitante com o
início de gradações crescentemente formatizantes da visão
chinesa de mundo, ou
seja, com a gradual emergência ainda em estágio rudimentar
de um logos
cingido por disposições
epistêmicas encravadas na idiosincrasia da
lingua,
ocorre um lento processo de depuração da consciência
mitológica, metafífica,
holística. Esse processo
“racionalizante”, discursivo, que de certa forma tem início
formal,
emblemáticamente, com
Laozi e Confúcio, espraindo-se a seguir através das “Cem
Escolas”,
expressa inevitavelmente
um caráter restringidor no plano das representações imanentes ao
arcabouço, formatando-as
pelo logos, mas a enriquece igualmente através da criação
de inúmeras novas
“imagens filosófico-literárias”. O próprio conceito Dao
sofrerá, em
termos de cerceamento à
modalidade simbiótica de apreensão de suas manifestações,
porquanto quando a “mente
anterior” homologava-se a elas sem o muro do logos em
construção, numa
vivência mais cosmogônica; esse aggiornamento paradigmático
lhe causará certa perda
de plenitude..
O mesmo se dá com a
noção do Qi (氣),
que de sua plena expressão de pneuma cósmico,
passará a ser
diversamente transmutada, por força da crescente tendência à
multiplicidade de
correspondências e homologações, perdendo muito de seu
“pratyakshico” teor
original. Mas a medicina e outras áreas de saber haverão de se
beneficiar.
Ocorrerá agora uma
segmentação cada vez maior dos qi(s), um orgânico, próprio
da
concepção fruto do
acoplamento do esperma com o óvulo, ligada a alma bo (魄);
um do
momento do nascimento; um
qi astral vinculado à alma superior, hun (魂),
que por
sua vez se subdidirá em
várias outras. Da alma bo pressupõe-se que retorne à terra
quando
da morte, ao passo que da
hun, a astral, perdurará por mais tempo, dependendo de seu
teor de
cristalização, sob a
forma de gui, “espirito”,
até que se dissolva de novo no espaço cósmico.
Existe, portanto, no
pensamento chinês, uma tendência inata à polivalência, à
multiplicidade
de aspectos que se
correspondem ou movem-se antagonicamente em mônadas; uma
tendência que se recusa
ao dogmatismo, aos monismos. Essa consciência profunda
do teatro das formas, das
sincronicidades, mas também das discontinuidades, faz
com que uma visão atual,
a saber, a do imperativo da multipolaridade nos assuntos
internaciionais, seja
facilmente compreendida e articulada pelos chineses. O chinês
sabe que hegemonia
absoluta vai de contra ao Dao do universo e das relações
humanas.
Quando prevalescente
unilateralmente, ela precisa ser ajustada ao concurso das partes
constitutivas, sob pena
de transbordar, sossobrar de maneira violenta. A longa história da
China,
em nada imutável e
serena como quer certo orientalismo romântico, é testemunho
eloquente
dessa luta sísifica
entre a sabedoria contemplativa e as inevitabilidades conflituosas
da contingência humana.
A imagens axiais,
centros de gravidade - evocadas pela roda -, a partir das quais o
homem
é suposto de se
articular, para si mesmo e para o mundo, movem-se periscopicamente.
O título
de uma obra de Confúcio,
o Zhongyong (中庸),
o “Centro Constante” é emblemático dessa
característica da mente
chinesa quanto à importância de se ter o centro como referencial
maior.
O próprio Laozi, e
abundantemente Zhuangzi, enfatizam essa visão em muitos passos. A
China
é o “País do Centro”,
Zhongguo (中國)
e para os daoistas o campo de
cinabre (dantian 丹田),
onde
deverá ser gerada a gestação da alquimia interna, encontra-se no
centro do corpo. Mas
a
busca pela integração com os dois outros planos, o do céu e o da
terra, constitui igualmente
elemento
integral dessa visão, em maior ou menor grau, perenemente holística.
O posicionar-se no
centro implica um oscilar contínuo, sutil, mas também um
projetar-se espiralmente
adiante, e retornar ao eixo. Esse equilíbrio de movimentos faz
avançar o mundo
idealmente em conformidade com os vários dao(s), evitando
assim os
desperdícios de energia
dos disturbios de movimentos bruscos e precipitados.
É a proverbial calma
chinesa, E a paciência que amadurece, que decorre daquela.
Circularidades.
Oscilações minimais... órbitas... formas completas... Captando e
acumulando qi,
esvaziando a mente de seus detritos (meditar em chinês é zuowang
(坐忘),
“sentar e esquecer”.
A caligrafia é arte suprema, porquanto faz o logos retornar
ao sentido contido na
imagem que se se expressa através do traço, e que revela da
qualidade
do qi do
calígrafo. Avançar em bloco, envolvendo, a partir de uma psicologia
fina,
sensível, e se possível
absolutamente invisível aos esquemas formais da
mente, as
dificuldades/oponentes a serem removidos. O weiqi (圍棋),
conhecida como Go,
é a melhor expressão
dessa visão holística através de uma prática lúdica. Para tal,
é necessário haver consciência da importância de um eixo
polivalente, um centro de
conhecimento anterior ao da mente.
Essa visão arquetipal
que se ratifica, cada vez mais ampla, esse esquema-paradigma
de percepção de si
mesmo e de “seis das sete partidas do mundo”, ensejou e
cristalizou na
mente do homo sinicus
um espaço de manobra cognitiva incomparável e fez com que, à
diferença de outros
povos, não se tornasse ele submisso a dogmas e fundamentalismos que
o teriam sujeitado a um
bitolamento existencial, talvez irreversível.
Quando um filósofo
moderno diz que toda palavra é já um pré-conceito e toda
definição uma
limitação, ele está fazendo eco a uma passagem emblemática
inicial do
Daodejing:
(“aquele”) Dao que for definido como Dao, não é o verdadeiro
Dao”. Tão ampla
e lúcida a consciência
filosofal chinesa antiga quanto ao perigoso constrangimento das
palavras, das
definições... tão plena sua consciência dos vários universos
cognitivos
(e dos princípios de
incerteza) que encontram-se adjacentes, como uma constelação de
mônadas de
descontinuidades!
O Dao manifesta-se
em inúmeros dao(s), pois infinitas são as “coisas
em si”, que encontram-se
para além e para aquém
da presumida realidade, cuja descrição encontra-se cativa das
projeções
limitantes da
intencionalidade do pensar e subjetividadeshumanas.
Nomear para o chinês,
ou seja, outorgar um estatuto à alguma coisa, oralmente ou com um
ideograma/logograma,
pleno de carga semântica e semiótica, constitui ato temerário, do
qual
ele se abstém
cautelosamente tanto quanto possível. Aqui prevalesce a máxima do
oráculo de Delphos: ¨
oute legei, oute criptei, álla semanei (“nem
diz, nem oculta, apenas
significa”).
As camadas
subterrâneas, e os labirintos interligados dos processos cognitivos
da mente
chinesa escapam ao
domínio do visível e podem ser apenas “captados” por intuição
imediata
ou osmose.
A visão inaugural
tríplice, do personagem mítico Fuxi, estabeleceu um paradigma que
tornou-se axial e que
tudo abrange. O “mundo” é pois visto como o resultado da
interpenetração de três
planos: o céu (leia-se: a procedência cósmica, leis das
emanações/vibrações
planetárias e estelares que influenciam a vida orgânica,
estações do ano,
cristalizações dos tipos psicológicos daí decorrentes), a terra,
e sua
vida orgânica, os
elementos, as recorrências e transformações, e o homem, fruto
dessas
duas influências
maiores, assim como por aquelas adquiridas em suas representações
de mundo, na forma de
idéias e ideologias provindas da vida polítco-social.
De certo que a
formulação do conceito de Dao, que ocorre inicialmente em Laozi, já
implica,
ainda que moderadamente,
um constrangimento perceptivo da dimensão asimétrica do
sentido maior original.
O Dao que
será explicitado, aludido e metaforizado pelo empuxo do logos
do daoismo
filosófico, estará
portanto restringindo, como já aludi, aquela visão inaugural,
amplíssima...
“re-colhendo” dela
pelo pensar, e pela linguagem que o permite, um quantum
explanável ou
alusível, que é de
resto o que o étimo de logos, procedendo de lego
(infinitivo: legein),
significa
etimologicamente, colher, reunir, mas também “falatório”, como
ocorre na Ilíada.
Ming, substantivo
e verbo, significa nome, nomear e denota significado, aquilo que
tornou-se nomeado. E
também aqui Laozi adverte em relação ao nomear, da mesma forma
com que o fizera
imediatamente antes, em relação ao Dao, no primeiro passo de
seu capítulo
inicial: ming ke ming
fei chan ming... 名
可 名 非 常 名.
Os vocábulos
chineses, e os teores emblemáticos e semióticos que seus logogramas
evocam, articulam
significados dentro de contextos pregnantes, mônadas de adjacências
semânticas. Tal fato
propicia e exige que se os compreenda por modulações e recorrer ao
dicionário pinándo a
primeira ou segunda entrada do verbete costuma ser extremamente
falacioso. Contexto,
instância e circunstância constituem condição sine qua non
para
que de fato se compreenda
o que está sendo dito, enunciado ou descrito. Assim sendo,
para o pensamento chinês
antigo, o território do não-nomeado, mas apenas aludido, o das
áreas da percepção
intuída ou a ser vislumbrada por alusão, detinha fundamental
importância
e deveria ser tanto
quanto possível preservado.
Enfaticamente
emblemática é portanto a primeira passagem do Daodejing: Dao ke
dao fei
chang dao... 道可
道 非 常 道 “o Dao
que puder (ser descrito, definido, analisado, etc )
como Dao não é o Dao
verdadeiro, perene, constante!” É como se Laozi estivesse
alertando que a tentativa
pelo logos de formatar as múltiplas dimensões daquele
conceito,
antigo e inaugural -
daquela visão ampla e simples das coisas do universo e do mundo -,
haveria desde logo de se
deparar com uma impossibilidade. Paradoxo extraordinário, axial e
típico da mente
chinesa!.
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