13 de nov. de 2012

O MAGO EM STRAVINSKY

A via, a praxis do mago é eminentemente uma arte. O vidUshaka – bouffon, trickster da tradição literária hindu- é o mensageiro entre dois mundos- o do manifestado e o do invisível; instigador de dois universos entre si antagônicos, mas complementares, porquanto faces de uma mesma moeda cósmica, porquanto ungíveis nos planos intermediários. O mago operacionaliza o velho adágio cabalístico “kether em malkuth, malkuth em kether”. 

Mercúrio, seu elemento, agencia o trânsito entre essas esferas, percurso este que se faz por desconstruções e dissoluções. Qual o Deus Janus, o artista-mago observa com uma de suas faces, a profana, o plano mundano, de camadas cada vez mais grosseiras, do manifestado. Com a outra, a sagrada, ele aprecia e absorve os elementos do conhecimento superior- e medita! E cristaliza a maturação da consciência que se instala.

Ele sabe que existem correspondências, jogos de espelhos, alternâncias entre os entre si contrários. Mas a característica maior do mago é a ação de "criar" realidades. Como se encontra em posição de vibrante oscilação, no locus intermediário que lhe é próprio, é daí que extrai sua força, sua técnica, e também o espaço de sua morada, em sua irrequieta solidão. 

Stravinsky é um dos maiores magos da arte ocidental. A primeira fase de sua obra, incontivelmente revolucionária, inaugural, augurial, constitui-se de intermitentes performances de bruxaria artística. A Sagração da Primavera,  obra  fauvistamente“selvagem”, encena o dissolução da saturação do psicologismo num século que acabara de nascer. Obra desconstrutivista, resgatante de primordialidades, ela envolve com seu charme de vanguarda o apreciador e atua subliminarmente, ensejando fragmentos de ação de ruptura em vários níveis.

Em Petrushka o grotesco está em pauta. A desintegração do ego ocorre sob procedimentos mefistofélicos. Situações de falso romantismo ou hipócrita sentimentalidade tornam-se instrumentos de uma crítica à mecanicidade dos sentires no homem. Estamos retornando a algo que a épocapassou a designar como inconsciente, ao resgaste de suas potencialidades. A arte antecipa, preconiza,  fala de um discurso do originário; as mitologias estão sendo escrutinadas e o homem recusa-se a aceitar o rolo compressor da mentalidade tecnológica, trivializante, reificante, que antecipa seus efeitos cada vez devastadores.

Nas subrepticiliades,  Stravinsky está declamando uma enfática renúncia àquela modalidade cultural, numa sísifica tentativa de completar algo inexoravelmente fadado ao fracasso. Suas alternâncias entre o moderno e o arcaico, entre o classicamente harmônico e o modernamente sincopado, entre o projeto e sua anulação, instauram uma dialética, uma fricção entre o sim e o não que se espraia por toda uma série de oitavas da relação do homem consigo mesmo e com o mundo externo, o político-cultural. A perspectiva de um projeto que, propulsionado inicialmente, é já em seguida renunciada, e retomada novamente num terceiro momento, forçando o apreciador a revisar seus hábitos, desalojar-se da habitual indolência estetizante, na qual estava abrigado.

A negação do antagonismo é, na Sagração, um truque ideológico. É na abnegação do sujeito, em nome da expectativa intermitente de um auspicioso porvir, que a força virtuosa – os chineses chamam-na de De – que os novos e genuínos conteúdos das obras de arte se forjam. Trabalho de ferreiro, paciência de ourives, impetuosidade dos guerreiros. O ser-estar, em si e dentro do mundo, revitaliza-se por esse fluxo contínuo de alternâncias.

Stravinsky, que certa vez dissera ver na música de Eric Satie apenas um projeto literário, não está contudo inteiramente livre desta vinculação. Sua dialética, não obstante, propicia a abnegação que descompromete aquele vínculo. A visão periscópica à la Wagner, a nostalgia de um Brahms, o êxtase onírico orientalizante a la de Debussy por vezes, são instâncias sem substância, sem alma. Mais tarde, no Spätwerk, certo retorno a um contido lirismo de cunho kief, ou seja, a bonhomia turca de um em Debussy, e que adquire a pregnância do bucólico ocidental. Também a restauração neoclássica funciona como elemento da dialética, e não como retorno em derrota.

Se em Mozart a emergência do eu burguês, ainda profundamente classicista, não sentira o peso das formas psicologicamente opressivas da industrialização, e  em Beethoven esta preocupação, aliada à pauta política de fundo eminentemente filosófica e humanista, torna-se quase uma obsessão, em Stravisnky, quando do retorno neoclássico de fundo barroco é nos madrigalenses, num Gesualdi, que ele encontrará sua fonte.

Mas sua grande magia é a da obra inaugural. O colapso da visão tradicional do eu adquire pleno momentum.  O 19  fora um século sofrido e assediado por todos os lados, oxigenantemente inclusive pelo pensamento oriental, com sua tônica na prática de desidentificação, sua estética expressionística e exótica na vertente japonesa com sua ênfase nos imensos espaços vazios. Debussy captara bem o espírito.O estatuto precário do sujeito encontra-se exposto,escancaradamente, agora também plenamente na arte, passado Kant e Nietzsche.  Os cromatismos fragmentantes de Wagner abriraram o caminho. na música A bruxaria em Mahler faz parte de um pacote do malaise cultural. Ele imola-se para antecipar.

Quando Stravinsky surge, o acúmulo atingira o momento propício para uma passagem, a desconstrução radical das leituras tradicionais torna-se um imperativo. Mas a substância dessa ação é vibratória e nada melhor que o inconsciente e toda a literatura mitológica de ritos de passagem para impulsioná-la. Mas,na medida em que desconstrói, algo de uma eterna ousia ôntica restaura-se por si mesma, pro-jecta-se ressuscitada, como a retomada do verdadeiro sentido do Ser em sua dimensão dionísica e insondável.

Stravinsky avança, oscila, manifesta-se e disfarça. O centro não é o centro na acepção corriqueira. Ele é a perspectiva metafísica do porvir, d0  hipostatisiar do quantum ôntico, fruto da convergência da vontade ao nível da essência com a vontade ao nível da compreensão superior quanto à possível destinação telúrica, e cósmica, do ser.   Mas para que tal retorno de cunho metafísico se faça possível, impõe-se retornar às essencialidades, aos rítmos e ritos primevos da humanidade, que constituem esse fundamento desvirtuado pelo cultural de superfície da era moderna.

Na radical, partitura da Histoire d’un Soldat, são esvaziados os apetrechos da vivência estética tradicional a tal ponto que somos postos diante de um dilema, ou mudamos o paradigma da postura estética, o hábito escravizante da empatia ( Einfühlung ) semiótico-sensorial, ou permanecemos no esquema receptivo do "céu anterior," usufruindo da obra apenas pelo impacto exótico de caráter heterodoxo, bizarro -, o que não deixa de ser uma modalidade positiva na recepcão estética. As duas sinfonias da década de 40 já discorrem e se autoprojetam como que ex-catedra, a partir de um novo patamar definitivamente assentado e consagrado pela recepcão. Mas que para tal existisse, em plena de década de 40, numa América ainda conservadora musicalmente, houve percurso, árduo e labirintuoso percurso. Houve a consagracão na média da recepção vigente dentre os cânones, a aceitação de um ilusionismo de nivel superior contra a ilusão banalmente reificada. Houve um transbordo de paradigma, uma passagem na oitava em termos de estética musical, um ímpeto revolucionário que se revezou com o seu elelemento moderador, o neoclassicismo. 

Mas se a passagem realmente correspondeu a uma irreversível nova cristalização da consciência estética, um irromper hegemonico, como se fora uma nova vanguarda predominando, essa é certamente uma questão que a era da reprodutibilidade, do domínio avassalador dos zig-zags da consciência banalizada, do  Kali Yuga em seu esplendor, deixa ainda plena, e pessimisticamente, em aberto. A julgar pelo que predominou a partir dos 60 - especificamente no âmbito da música erudita -, o eixo parece ter permanecido conservador na média das médias da recepcão.