5 de nov. de 2012

HEGEMONIA, MOMENTUM E PAIDEIA

Reflexões sobre Filosofia Política



大道廢有仁義    Da Dao Fei You Ren Yi !

Grande Dao Declina... surgem  a   Bondade e a  Moral!

    Lao Zi, Dao De Jing, XVIII


Dois termos gregos e um latino, cujos significados não sofreram qualquer variação semântica ao longo da história, porquanto seus sentidos são inequívocos.Talvez apenas momentum tenha incorporado certo realce na estilística recente, hegemonia e paideia, por sua vez, adquiriram proeminente estatuto com Gramsci e Jaeger.

O verbo hegemonein, em grego, significa: aquilo que lidera, que leva adiante um movimento, tal como a ponta de um cardume ou o curso de um processo social conduzida por um grupo político. Os antigos gregos sabiam sobejamente a que realidade o termo se referia e talvez por isso havia dentre eles o dito: deliberar..., lentamente, mas partir com rapidez para a ação (Bouleuou men bradeos, epitelei de tacheos)!

Num sentido amplo, consideramos  "vanguarda" como aquele segmento da sociedade pressuposto de conduzir  adiante a tocha das "melhores" perspectivas de avanços de uma cultura, que espera-se poder constituir a tendência hegemônica. Os bolsheviques, quando assumem de facto o poder e se consolidam como nova ordem, passam a ter gradualmente hegemonia em todo espectro social e cultural da nova Rússia, mas aos poucos perderão essa dimensão por usurpação do poder decisório e se manterão como hegemônicos apenas no plano politico, no aparelho do estado e questionavelmente junto às massas ( não se dispõe de estatísticas de pesquisa de opinião dessa época!), como uma maioria partidária interna da nomenclatura que se formava. O conceito latente de hegemonia, popular,  democrática desaparece para ceder lugar a  uma concentração de poderes que não seria legitimada pelas urnas, mas pela pura imposição do programa do núcleo central sobre as instituições do estado. Mas essa era de qualquer forma uma *vantagem* hegemônica, politicamente real (vernunftig und wirklich, racional e real, diria Hegel), ainda que manu militari, que durou várias décadas através de oscilações apenas internas do bloco consolidado, e de muita e radical eliminação da oposição "revisionista ", assim como a prática de outras "profilaxias".

Tal paradigma de consolidação de poder tem sido repetido em vários outros processos políticos, na China e em Cuba por exemplo, e é possível que ecos  daquele modelo leninista, em dimensão diminuta e sob a égide de outro Zeitgeist, haja sido, ainda que tenuemente, articulado recentemente no Brasil.

Tal teria ocorrido sob a discreta bandeira de uma estratégia de consolidação da hegemonia partidária e o aparelhamento do estado para fins específicos de prolongada permanência no poder, visando a tergiversar o salutar jogo democrático da alternância política. Poder-se-á retrucar que, de uma maneira ou de outra, em maior ou menor grau, tal é o processo natural do jogo do poder. E até certo ponto tal alegação é perfeitamente justificável. Mas estamos lidando aqui com especificidades.


O pensamento político chinês, e a longínqua história do país que o exemplifica à saciedade, dimensiona concretamente a concretude desse savoir-faire - eminentemente pragmático, embora sempre propenso a seguir os princípios, conceitos-prescrições de sua sabedoria -, entende e pratica as virtudes do campo semântico do conceito de hegemonia desde recuadíssima data. Em chinês moderno, o termo correspondente perdeu a riqueza matricial do termo genérico antigo, mais forte e direto em sua primitiva imagística, para previlegiar um viés ideológico: baquan, dois caracteres complexos que se  combinam para formar o conceito, o primeiro dos quais significando "déspota" e o segundo autoridade. Aqui a variação semântica fala, e muito, de certa visão.

Em chinês clássico, contudo, o ideograma que mais se aproxima nuclearmente da idéia  é shi, um caracter composto complexo (hui yi), formado por quatro significantes, tendo como radical li, força. A idéia central é a de algo que adquire empuxo, força propulsora e por isso torna-se vantagem estratégica, prepondera, torna-se,n ão menos, momentum. Shi é o título de um dos capítulos do Método Militar (Bingfa) ou Arte da Guerra, de Sun Zi. Seja como for, e palavras à parte, a dinâmica da idéia central é ali compreendida em suas variações, aplicações e matizes.

Ora, quando um governo, de jure e de facto, possui esta margem de vantagem, esse momentum hegemônico a seu favor – e existe sempre uma visão concreta subjacente das necessidades imperativas de uma nação, que emerge naturalmente do Zeitgeist e das necessidaees factuais econômicas, institucionais, morais, etc, – trata-se, portanto, de aproveitar "essa maré" favorável para implementar os mais altos desígnios que um governante possa outorgar ao povo. Trata-se de extrair vantagem máxima do momentum, principalmente ali onde existe consenso quanto às preementes necessidades, objetivas e subjetivas, materiais e espirituais.Está aqui em pauta a edificação de um verdadeiro processo educacional de cunho ético, que atue de modo a coibir o câncer de certos males, como o da corrupção, que costuma ser um desses ítens cruciais.

Isto porque, se é de fundamental  importância que o ordenamento jurídico seja severo e eficazmente aplicável para coibir o repertório de ilícitos civis e penais que afligem o país, numa ponta, necessário se faz que haja, na outra, uma espécie de ideologia educacional que cristalize, na consciência do cidadão, certas posturas inequívocas de cidadania, de postura ética face à coisa publica como um todo, não menos em todos aqueles outros casos, flagrantes, que a lei não contempla. Caso contrário, teremos então que aumentar indefinidamente o número de leis, e de prisões.

Mas esse processo educacional de construção plena da consciência da cidadania e de respeito à res publica tem que se converter numa espécie de visão fundamental de mundo, elementos metafísicos inclusos, voltada eminentemente para a pólis, a partir da qual não menos, a dimensão de liberdades e direitos individuais (a prática da minha liberdade tem que respeitar a dimensão de liberdade do outro), deverá funcionar como vetor, respaldada pelo nosso ordenamento jurídico positivo e pelas possíveis acomodações que nele possam ser feitas do direito natural (os anarquistas, naturalistas e comunalistas serão plenamente contemplados!). E essa visão educacional, esse incisivo e abrangente processo de formação do homo brasiliensi, a ser urgentemente implementada, há de subscrever-se  ao antigo conceito de paideia, por falta de um melhor.

A paideia, cujo étimo estreitamente vinculado à pedagogia é inequívoco, pressupõe uma nação  tornada proativa em sua articulação educacional para a formação de indivíduos de pleno direito na articulação de seus entes cívicos e ontológicos. Como as forças retrógradas do ethos nacional tendem a persistir em seus automatismos, aberta ou veladamente, insistindo  em manter um estado de torpor provindo dos hábitos recorrentes, seja sob uma plácida conivência com a vida orgânica, seja pela manutenção do status quo, uma nova paideia que erradique essas perniciosas tendências de origem encontrará sempre resistência.

   Tirar partido da vantagem hegemônica e do momentum para ensejar uma nova paideia é tarefa de grandes políticos e estadistas. Essa é sem dúvida a grande arte da política propugnada e encetada pelos grandes nomes da história do pensamento político, de Péricles e Platão até os mais recentes representantes. Certos momentos nacionais ensejam isso, mas, como diria   Maquiavel, o destino/sorte ( fortuna ) é uma dama que tem que ser submetida (... perché la fortuna è donna ed è necessario, volendola tenere sotto...).

Portanto, exatamente como nas mais variadas situações da vida, se não se aproveita o momento, ele se esvai talvez para nunca mais voltar. Mas para que ele, esse ou essa governante, detenha tal visão, é necessário que lhe sejam próprias qualificações, inatas ou adquiridas, entre outras aquelas que colocam os interesses maiores do país acima de sua pauta pessoal, de sua vaidade, de suas cerceantes circunstâncias de origem, pessoais ou partidárias.

Trata-se de uma transgressão, uma radical passagem no seio do status quo, de um empuxo que ultrapassa a inércia. Impõem-se que os motivos pessoais, travestidos pela retórica de ideais nacionais, não predominem sobre a visão maior, impessoal, a visão do estadista que vislumbra, por uma combinação de sabedoria política, astúcia, coragem e magnanimidade, os momentos certos para encetar as grandes ações que originarão e desembocarão nas passagens fundamentais do fortalecimento da  coisa pública e da idealmente plena participação dos cidadãos na edificação da nação. Trata-se pois de uma verdadeira revolução branca (nada de "coloridas", por favor!), posta em prática sob a roupagem de profundas reformas. É necessário, portanto que tal governante  seja ele mesmo fruto de uma espécie de paideia anterior, um optimum de seu ethos, seja ele/ela algo de um/a visionário/a.


Contudo a paideia - Bildung em alemão, ou a Educação Formativa, em português - esse conceito-vetor basilar provindo da grécia antiga, precisa ser  renovado e adaptado continuamente, o que os próprios gregos parecem ter esquecido de fazer na própria história já se vão uns dois mil e trezentos anos. A formação educacional e de consciência política, assim como dos cuidados do jovem para consigo próprio (cuidados de si), e o respeito à coisa pública e o amor à pátria, constituem os verdadeiros objetivos da paideia e têm por meta a construção e exercício pleno da cidadania. Uma encetada paideia nacional representa a grande estratégia, enquanto os sistemas educacionais representam as táticas, para obtenção dos mais altos ideias que existem subjacentes no ethos  de um povo ou nos aprimoramentos de visão de mundo que o Zeitgeist esteja forjando.

Cada nação tem sem dúvida latentes os subsídios de peculiaridades de sua própria paideia,provinda do seu ethos e mito original, manifestos ou ainda em imanência, mas existem sem dúvida os valores universais, sem os quais as nações dificilmente poderiam almejar a paz ecumênica. São eles os direitos e deveres objetivos e subjetivos referentes  à família/grupo social, ao trabalho, à nação. Esses constituem a manifestação plena, e não sofisticamente alardeada, do exercício e prática do conjunto de leis que articulam  o estágio de  avanço da sociedade. Os países escandinavos, que não entram em guerras físicas visando hegemonias geopolíticas internas ou externas há uns trezentos anos, sabem bem, pela emergência de uma consciência de cidadania cada vez mais aprimorada, que existem alguns eixos fundamentais no desenvolvimento de uma nação, para além de posturas  estreitamente ideológicas. Existe um consenso comum na média preponderante  da consciência nacional de que tal direção é esta ou aquela verdade de um dado momento.

 Países que por uma razão ou outra - seja pelos antecedentes históricos, condições geográficas, formação religiosa, índole do ethos, etc - não dispõem dessas condições sociológicas naturais, precisam certamente tirar partido de situações que possam ensejar a emergência de tais circunstâncias propícias, evitando a exacerbação dos extremos e convergindo para o aprofundamento  do centro. Mas precisa haver a vanguarda que vislumbre isso! E o político que o faça. E o momentum!

Cabe aos políticos e à intelligentsia vislumbrar e ensejar a emergência ou aprofundamento dessa consciência cívico-jurídica, dessa visão de mundo a tornar-se hegemônica na consciência do povo. Caso contrário, forças retroativas, provindas da obsessão individualista, ou dos perigos geopolíticos, poderão atuar e submeter a patamares pífios tal consciência popular, seja pela propagaçao de falsos valores e ideais, seja pela imposição materialista-consumista de novos modi vivendi do modelo econômico em curso, revertendo a condição do país a estados  de absoluta regressão e talvez de completa perda de identidade e subsequente avassalagem.

Para tal, parece-me que uma nova filosofia social, um novo prontuário de objetivos de vida (o telos grego, o artha hindu)  tenham que substituir aqueles atuais vigentes que visam ao tecnicismo, ao consumismo e ao lazer como o tripé do objetivo da felicidade humana. Esta atual postura vigente, materialista-consumista-lazerista, resulta inevitavelmente em perda de substância filosófica quanto à destinação humana, seja em sua vertente laica de aprimoramento ôntico, seja em suas perspectivas metafísicas, pois, como indagava Hegel, como pode um povo viver sem a dimensão metafísica?

  Uma nova paideia brasiliensi deverá incorporar não apenas a cristalização de   uma consciência cívico-jurídica através do processo educacional formal - por quê não se introduz a disciplina Direito desde o ensino fundamental? -, mas também uma nova visão de mundo que incorporará elementos ecológicos, dietéticos, disciplinas psicosomáticas e prontuários ético-deontológicos, conhecimentos cujo arcabouço de referências existe já abundantemente disponível.

Quanto mais o conhecimento do ordenamento jurídico houver sido incorporado à consciência popular - à consciência da realidade paupável de um Estado de Direito -, com a concomitante plena aplicação de suas sanções quando das infrações, mais preparados estaremos para ir retornando ao Direito Natural, agora uma oitava acima. Quanto mais introjetarmos uma visão superior dos potenciais - ainda que contigenciais diante da realidade cósmica-, do espírito humano, mais propensos estaremos a sair do ciclo interminável dessa história autodestrutiva que tem sido a marca registrada da humanidade até aqui. Sem o processo de aprimoramento de uma nova consciência cívica e metafísica estaremos aprisionados ao eterno retorno da roda cármica, do samsara que os sábios hindus aludiam, e talvez consigamos bem mais cedo do que qualquer acidente cósmico possa encetar, destruir por completo as possibilidades que tenhamos de encontrar a tão propalada felicidade, nos destruindo a nós mesmos e o mundo ao redor.

"Precisamos por vezes de remédios amargos - nam inogda nuzhnie gorkie lekarstva", disse Lermontov certa vez. Certamente que precisaremos disso também, pois que sem o esforço para quebrar hábitos, para “cortar na carne” (não como retórica, mas de fato) e promover com sinceridade e empenho de propósito a implementação de profundas reformas, não chegaremos a lugar algum.

Precisamos instaurar uma nova visão de mundo no Brasil, cuja espinha dorsal haverá de ser vibrada pelo  reverberar da ética em toda a sua dimensão. Mas para tal temos que constituir uma nova visão educacional, uma nova Paideia. Qual o líder político ou partido que encetará essa visão?

Os partidos que têm conduzio os destinos do país nas últimas décadas mostraram-se indiferentes a esse imperativo, e nunca incorporaram em suas filosofias políticas tal visão. Restou-nos, então,  o ordenamento  jurídico e a imanência ética de nossas consciências para resistir e  fazer avançar pachorrentamente esse processo, o nosso processo civilizatório.

Quando a instância maior que recebeu a outorga pelo voto para conduzir os destinos da nação tem como parte de seus objetivos uma noção conspiratória de servir primeiro a seus interesses e a seguir aos do país, acomodando-se e justificando-se para tal no ethos político vigente, na velha e viciada praxe, é então duvidoso que dali saia alguma grande paideia.

Paideia, ou a implementação de um programa de formação de um homo brasiliensi terá por espinha dorsal uma visão a um só tempo ética e filosófica do mundo,  visão que incorpora uma dose de realismo sócio-político-geopolítico com uma outra de expansão  do principium individuationis, circunscrita essa última aos limites de respeito à cidadania do outro, cada vez mais aprimorada  por um ordenamento jurídico eficaz.

O elemento utópico de qualquer paideia proativa reside em sua dimensão metafísica, e em seu ideário ontológico face as viscissitudes dos fatores de absurdo da situação humana no planeta e no cosmo. Uma paideia proativa constitui o work in progress de uma sociedade, não obstante sua dimensão sísifica e seus obstáculos; para enfrentá-los terá que ser feito uso de boas táticas visando à estratégia maior.

Hegemonia, Momentum e Paideia, um tripé conceitual cuja plena compreensão, e implementação pela ação política e pública, poderá ajudar a humanidade, mas muito particularmente o Brasil, a se retificar e crescer como nação na plena acepção histórica - e talvez quasi-metafísica - da palavra, para além, decididamente bem além do estágio inda claudicante e entorpecido em que se encontra.