Reflexões sobre Filosofia Política
大道廢有仁義 Da Dao Fei You Ren Yi !
Lao Zi, Dao De Jing, XVIII
大道廢有仁義 Da Dao Fei You Ren Yi !
Grande Dao Declina... surgem a Bondade e a Moral!
Lao Zi, Dao De Jing, XVIII
Dois termos gregos e um latino,
cujos significados não sofreram qualquer variação semântica ao longo da
história, porquanto seus sentidos são inequívocos.Talvez apenas momentum tenha
incorporado certo realce na estilística recente, hegemonia e paideia,
por sua vez, adquiriram proeminente estatuto com Gramsci e Jaeger.
O verbo hegemonein,
em grego, significa: aquilo que lidera, que leva adiante um movimento,
tal como a ponta de um cardume ou o curso de um processo social
conduzida por um grupo político. Os antigos gregos sabiam sobejamente a
que realidade o termo se referia e talvez por isso havia dentre eles o
dito: deliberar..., lentamente, mas partir com rapidez para a ação (Bouleuou men bradeos, epitelei de tacheos)!
Num
sentido amplo, consideramos "vanguarda" como aquele segmento da
sociedade pressuposto de conduzir adiante a tocha das "melhores"
perspectivas de avanços de uma cultura, que espera-se poder constituir a
tendência hegemônica. Os bolsheviques, quando assumem de facto o poder e
se consolidam como nova ordem, passam a ter gradualmente hegemonia em
todo espectro social e cultural da nova Rússia, mas aos poucos perderão
essa dimensão por usurpação do poder decisório e se manterão como
hegemônicos apenas no plano politico, no aparelho do estado e
questionavelmente junto às massas ( não se dispõe de estatísticas de
pesquisa de opinião dessa época!), como uma maioria partidária
interna da nomenclatura que se formava. O conceito latente de hegemonia,
popular, democrática desaparece para ceder lugar a uma concentração
de poderes que não seria legitimada pelas urnas, mas pela pura imposição
do programa do núcleo central sobre as instituições do estado. Mas essa
era de qualquer forma uma *vantagem* hegemônica, politicamente real (vernunftig und wirklich, racional e real, diria Hegel), ainda que manu militari,
que durou várias décadas através de oscilações apenas internas do bloco
consolidado, e de muita e radical eliminação da oposição "revisionista
", assim como a prática de outras "profilaxias".
Tal
paradigma de consolidação de poder tem sido repetido em vários outros
processos políticos, na China e em Cuba por exemplo, e é possível que
ecos daquele modelo leninista, em dimensão diminuta e sob a égide de
outro Zeitgeist, haja sido, ainda que tenuemente, articulado recentemente no Brasil.
Tal
teria ocorrido sob a discreta bandeira de uma estratégia de
consolidação da hegemonia partidária e o aparelhamento do estado para
fins específicos de prolongada permanência no poder, visando a
tergiversar o salutar jogo democrático da alternância política.
Poder-se-á retrucar que, de uma maneira ou de outra, em maior ou menor
grau, tal é o processo natural do jogo do poder. E até certo ponto tal
alegação é perfeitamente justificável. Mas estamos lidando aqui com
especificidades.
O
pensamento político chinês, e a longínqua história do país que o
exemplifica à saciedade, dimensiona concretamente a concretude desse
savoir-faire - eminentemente pragmático, embora sempre propenso a seguir
os princípios, conceitos-prescrições de sua sabedoria -, entende e
pratica as virtudes do campo semântico do conceito de hegemonia desde
recuadíssima data. Em chinês moderno, o termo correspondente perdeu a
riqueza matricial do termo genérico antigo, mais forte e direto em sua
primitiva imagística, para previlegiar um viés ideológico: baquan,
dois caracteres complexos que se combinam para formar o conceito, o
primeiro dos quais significando "déspota" e o segundo autoridade. Aqui a
variação semântica fala, e muito, de certa visão.
Em chinês clássico, contudo, o ideograma que mais se aproxima nuclearmente da idéia é shi, um caracter composto complexo (hui yi),
formado por quatro significantes, tendo como radical li, força. A idéia
central é a de algo que adquire empuxo, força propulsora e por isso
torna-se vantagem estratégica, prepondera, torna-se,n ão menos, momentum. Shi é o título de um dos capítulos do Método Militar (Bingfa)
ou Arte da Guerra, de Sun Zi. Seja como for, e palavras à parte, a
dinâmica da idéia central é ali compreendida em suas variações,
aplicações e matizes.
Ora, quando um governo, de jure e de facto, possui esta margem de vantagem, esse momentum
hegemônico a seu favor – e existe sempre uma visão concreta subjacente
das necessidades imperativas de uma nação, que emerge naturalmente do Zeitgeist
e das necessidaees factuais econômicas, institucionais, morais, etc, –
trata-se, portanto, de aproveitar "essa maré" favorável para implementar
os mais altos desígnios que um governante possa outorgar ao povo.
Trata-se de extrair vantagem máxima do momentum, principalmente ali onde
existe consenso quanto às preementes necessidades, objetivas e
subjetivas, materiais e espirituais.Está aqui em pauta a edificação de
um verdadeiro processo educacional de cunho ético, que atue de modo a
coibir o câncer de certos males, como o da corrupção, que costuma ser um
desses ítens cruciais.
Isto
porque, se é de fundamental importância que o ordenamento jurídico
seja severo e eficazmente aplicável para coibir o repertório de ilícitos
civis e penais que afligem o país, numa ponta, necessário se faz que
haja, na outra, uma espécie de ideologia educacional que cristalize, na
consciência do cidadão, certas posturas inequívocas de cidadania, de
postura ética face à coisa publica como um todo, não menos em todos
aqueles outros casos, flagrantes, que a lei não contempla. Caso
contrário, teremos então que aumentar indefinidamente o número de leis, e
de prisões.
Mas esse processo educacional de construção plena da consciência da cidadania e de respeito à res publica
tem que se converter numa espécie de visão fundamental de mundo,
elementos metafísicos inclusos, voltada eminentemente para a pólis, a
partir da qual não menos, a dimensão de liberdades e direitos
individuais (a prática da minha liberdade tem que respeitar a dimensão
de liberdade do outro), deverá funcionar como vetor, respaldada pelo
nosso ordenamento jurídico positivo e pelas possíveis acomodações que
nele possam ser feitas do direito natural (os anarquistas, naturalistas e
comunalistas serão plenamente contemplados!). E essa visão educacional,
esse incisivo e abrangente processo de formação do homo brasiliensi, a ser urgentemente implementada, há de subscrever-se ao antigo conceito de paideia, por falta de um melhor.
A
paideia, cujo étimo estreitamente vinculado à pedagogia é inequívoco,
pressupõe uma nação tornada proativa em sua articulação educacional
para a formação de indivíduos de pleno direito na articulação de seus
entes cívicos e ontológicos. Como as forças retrógradas do ethos nacional
tendem a persistir em seus automatismos, aberta ou veladamente,
insistindo em manter um estado de torpor provindo dos hábitos
recorrentes, seja sob uma plácida conivência com a vida orgânica, seja
pela manutenção do status quo, uma nova paideia que erradique essas perniciosas tendências de origem encontrará sempre resistência.
Tirar partido da vantagem hegemônica e do momentum para
ensejar uma nova paideia é tarefa de grandes políticos e estadistas.
Essa é sem dúvida a grande arte da política propugnada e encetada pelos
grandes nomes da história do pensamento político, de Péricles e Platão
até os mais recentes representantes. Certos momentos nacionais ensejam
isso, mas, como diria Maquiavel, o destino/sorte ( fortuna ) é uma dama que tem que ser submetida (... perché la fortuna è donna ed è necessario, volendola tenere sotto...).
Portanto,
exatamente como nas mais variadas situações da vida, se não se
aproveita o momento, ele se esvai talvez para nunca mais voltar. Mas
para que ele, esse ou essa governante, detenha tal visão, é necessário
que lhe sejam próprias qualificações, inatas ou adquiridas, entre outras
aquelas que colocam os interesses maiores do país acima de sua pauta
pessoal, de sua vaidade, de suas cerceantes circunstâncias de origem,
pessoais ou partidárias.
Trata-se
de uma transgressão, uma radical passagem no seio do status quo, de um
empuxo que ultrapassa a inércia. Impõem-se que os motivos pessoais,
travestidos pela retórica de ideais nacionais, não predominem sobre a
visão maior, impessoal, a visão do estadista que vislumbra, por uma
combinação de sabedoria política, astúcia, coragem e magnanimidade, os
momentos certos para encetar as grandes ações que originarão e
desembocarão nas passagens fundamentais do fortalecimento da coisa
pública e da idealmente plena participação dos cidadãos na edificação da
nação. Trata-se pois de uma verdadeira revolução branca (nada de
"coloridas", por favor!), posta em prática sob a roupagem de profundas
reformas. É necessário, portanto que tal governante seja ele mesmo
fruto de uma espécie de paideia anterior, um optimum de seu ethos, seja
ele/ela algo de um/a visionário/a.
Contudo a paideia - Bildung
em alemão, ou a Educação Formativa, em português - esse conceito-vetor
basilar provindo da grécia antiga, precisa ser renovado e adaptado
continuamente, o que os próprios gregos parecem ter esquecido de fazer
na própria história já se vão uns dois mil e trezentos anos. A formação
educacional e de consciência política, assim como dos cuidados do jovem
para consigo próprio (cuidados de si), e o respeito à coisa pública e o
amor à pátria, constituem os verdadeiros objetivos da paideia e têm por
meta a construção e exercício pleno da cidadania. Uma encetada paideia
nacional representa a grande estratégia, enquanto os sistemas
educacionais representam as táticas, para obtenção dos mais altos ideias
que existem subjacentes no ethos de um povo ou nos aprimoramentos de
visão de mundo que o Zeitgeist esteja forjando.
Cada
nação tem sem dúvida latentes os subsídios de peculiaridades de sua
própria paideia,provinda do seu ethos e mito original, manifestos ou
ainda em imanência, mas existem sem dúvida os valores universais, sem os
quais as nações dificilmente poderiam almejar a paz ecumênica. São eles
os direitos e deveres objetivos e subjetivos referentes à
família/grupo social, ao trabalho, à nação. Esses constituem a
manifestação plena, e não sofisticamente alardeada, do exercício e
prática do conjunto de leis que articulam o estágio de avanço da
sociedade. Os países escandinavos, que não entram em guerras físicas
visando hegemonias geopolíticas internas ou externas há uns trezentos
anos, sabem bem, pela emergência de uma consciência de cidadania cada
vez mais aprimorada, que existem alguns eixos fundamentais no
desenvolvimento de uma nação, para além de posturas estreitamente
ideológicas. Existe um consenso comum na média preponderante da
consciência nacional de que tal direção é esta ou aquela verdade de um
dado momento.
Países
que por uma razão ou outra - seja pelos antecedentes históricos,
condições geográficas, formação religiosa, índole do ethos, etc - não
dispõem dessas condições sociológicas naturais, precisam certamente
tirar partido de situações que possam ensejar a emergência de tais
circunstâncias propícias, evitando a exacerbação dos extremos e
convergindo para o aprofundamento do centro. Mas precisa haver a
vanguarda que vislumbre isso! E o político que o faça. E o momentum!
Cabe
aos políticos e à intelligentsia vislumbrar e ensejar a emergência ou
aprofundamento dessa consciência cívico-jurídica, dessa visão de mundo a
tornar-se hegemônica na consciência do povo. Caso contrário, forças
retroativas, provindas da obsessão individualista, ou dos perigos
geopolíticos, poderão atuar e submeter a patamares pífios tal
consciência popular, seja pela propagaçao de falsos valores e ideais,
seja pela imposição materialista-consumista de novos modi vivendi
do modelo econômico em curso, revertendo a condição do país a estados
de absoluta regressão e talvez de completa perda de identidade e
subsequente avassalagem.
Para tal, parece-me que uma nova filosofia social, um novo prontuário de objetivos de vida (o telos grego, o artha
hindu) tenham que substituir aqueles atuais vigentes que visam ao
tecnicismo, ao consumismo e ao lazer como o tripé do objetivo da
felicidade humana. Esta atual postura vigente,
materialista-consumista-lazerista, resulta inevitavelmente em perda de
substância filosófica quanto à destinação
humana, seja em sua vertente laica de aprimoramento ôntico, seja em
suas perspectivas metafísicas, pois, como indagava Hegel, como pode um
povo viver sem a dimensão metafísica?
Uma nova paideia brasiliensi deverá
incorporar não apenas a cristalização de uma consciência
cívico-jurídica através do processo educacional formal - por quê não se
introduz a disciplina Direito desde o ensino fundamental? -, mas também
uma nova visão de mundo que incorporará elementos ecológicos,
dietéticos, disciplinas psicosomáticas e prontuários
ético-deontológicos, conhecimentos cujo arcabouço de referências existe
já abundantemente disponível.
Quanto
mais o conhecimento do ordenamento jurídico houver sido incorporado à
consciência popular - à consciência da realidade paupável de um Estado
de Direito -, com a concomitante plena aplicação de suas sanções quando
das infrações, mais preparados estaremos para ir retornando ao Direito
Natural, agora uma oitava acima. Quanto mais introjetarmos uma visão
superior dos potenciais - ainda que contigenciais diante da realidade
cósmica-, do espírito humano, mais propensos estaremos a sair do ciclo
interminável dessa história autodestrutiva que tem sido a marca
registrada da humanidade até aqui. Sem o processo de aprimoramento de
uma nova consciência cívica e metafísica estaremos aprisionados ao
eterno retorno da roda cármica, do samsara que os sábios hindus aludiam,
e talvez consigamos bem mais cedo do que qualquer acidente cósmico
possa encetar, destruir por completo as possibilidades que tenhamos de
encontrar a tão propalada felicidade, nos destruindo a nós mesmos e o
mundo ao redor.
"Precisamos
por vezes de remédios amargos - nam inogda nuzhnie gorkie lekarstva",
disse Lermontov certa vez. Certamente que precisaremos disso também,
pois que sem o esforço para quebrar hábitos, para “cortar na carne” (não
como retórica, mas de fato) e promover com sinceridade e empenho de
propósito a implementação de profundas reformas, não chegaremos a lugar
algum.
Precisamos
instaurar uma nova visão de mundo no Brasil, cuja espinha dorsal haverá
de ser vibrada pelo reverberar da ética em toda a sua dimensão. Mas
para tal temos que constituir uma nova visão educacional, uma nova
Paideia. Qual o líder político ou partido que encetará essa visão?
Os
partidos que têm conduzio os destinos do país nas últimas décadas
mostraram-se indiferentes a esse imperativo, e nunca incorporaram em
suas filosofias políticas tal visão. Restou-nos, então, o ordenamento
jurídico e a imanência ética de nossas consciências para resistir e
fazer avançar pachorrentamente esse processo, o nosso processo
civilizatório.
Quando
a instância maior que recebeu a outorga pelo voto para conduzir os
destinos da nação tem como parte de seus objetivos uma noção
conspiratória de servir primeiro a seus interesses e a seguir aos do
país, acomodando-se e justificando-se para tal no ethos político
vigente, na velha e viciada praxe, é então duvidoso que dali saia alguma
grande paideia.
Paideia, ou a implementação de um programa de formação de um homo brasiliensi terá
por espinha dorsal uma visão a um só tempo ética e filosófica do
mundo, visão que incorpora uma dose de realismo
sócio-político-geopolítico com uma outra de expansão do principium individuationis, circunscrita
essa última aos limites de respeito à cidadania do outro, cada vez mais
aprimorada por um ordenamento jurídico eficaz.
O elemento utópico de
qualquer paideia proativa reside em sua dimensão metafísica, e em seu
ideário ontológico face as viscissitudes dos fatores de absurdo da
situação humana no planeta e no cosmo. Uma paideia proativa constitui o
work in progress de uma sociedade, não
obstante sua dimensão sísifica e seus obstáculos; para enfrentá-los terá que ser feito uso de boas táticas
visando à estratégia maior.
Hegemonia,
Momentum e Paideia, um tripé conceitual cuja plena compreensão, e
implementação pela ação política e pública, poderá ajudar a humanidade,
mas muito particularmente o Brasil, a se retificar e crescer como nação
na plena acepção histórica - e talvez quasi-metafísica - da palavra,
para além, decididamente bem além do estágio inda claudicante e
entorpecido em que se encontra.