SÂNSCRITO: TRÊS ABORDAGENS
1) A Descoberta
do Sânscrito Pelo Ocidente.
2) PAnini e a a
Estrutura do ASTAdhyAyI.
3) A Tradição
Gramatical da Índia como Disciplina Espiritual.
( Publicados originalmente in REVISTA BRASILEIRA DE LINGUA E LITERATURA, 1980/81 )
- I -
A Descoberta
do Sânscrito pelo Ocidente
(…) “More perfect
than Greek, more copious than Latin...”
A rigor, a primeira gramática de sânscrito a qual temos conhecimento foi a do missionário jesuita Heinrich
Roth, que chegou à Índia ainda na primeira metade do século XVII e
por ali viveu, percorrendo grande parte do país, por
várias décadas. Ele é o autor de uma Grammaticca
linguae Sanscretanae Brachmanum Indiae Orientalis, completada em
1660. Roth
dominava o persa, o kanadda assim como o hindustani e numa de suas viagens à
Europa entrou em contato e influenciou significativamente Athanasius
Kircher , famoso por sua polivalente e algo cabalística visão das
linguas orientais, em particular o chinês.
Profundamente
inspirado pela gramática de Roth, que viria a falecer em Agra em
1668, o segundo importante nome nessa linhagem de primeiros
sanscritólogos e indianistas é sem dúvida o de Johann
Ernst Hanxleden, também conhecido como Arnos
Pater, que chegou à costa do Malabar, a Grande Goa, em 1700 e
viveu no sul da Índia até o final da vida (1732). Igualmente
poliglota, compôs uma gramática conhecida como Grammatica
Grandonica, que permaneceu por quase 300
anos desaparecida até ser redescoberta num convento na Itália e
recentemente eruditamente editada.
Interessante observar a importância de que desfrutava a lingua portuguesa por essa época nos círculos missionários no Oriente, visto que Roth e Hanxleden, sem dúvida os primeiros sanscritistas e indólogos de que temos notícia, conheciam também o português, além de algumas das dificílimas linguas dravidianas. Ainda nesse contexto prévio do em breve emergente
orientalismo, há de se mencionar uma outra gramática, publicada
também no sul da Índia em 1790, a saber, a do o missionário
Paulinus: grammaticam brahmanicam siddharUpam, tida pelos estudiosos
como sendo, em larga medida, um plágio das gramáticas de Roth e
Hanxleden. O SiddharUpam, diga-se de passagem, era um dos mais
utilizados manuais de aprendizado de sânscrito no sul da Índia à
época de Roth e Hanxleden, e Paulinus resolver entitular sua
gramática com o mesmo título.
A obra de Hanxleden,
como sanscritista e indólogo, é variada e tem-se notícia que de sua pluma houve também um Dicionário Português-Malayala, assim como vários poemas de
inspiração cristã compostos em sânscrito ou numa das linguas
dravídicas que ele conhecia bem. Assim é que desde fins do século XVI o
português tornara-se uma lingua de destinação para os rudimentos
lexicográficos ou gramaticais, tanto na Índia quanto na
China, onde o primeiro Diccionario Português-Chinês (1562/83) foi compilado em 198 fólios por
um jesuita italiano residente em Macau, Michele Ruggieri.
Ainda dessa primeira leva de missionários que se debruçaram sobre o
arcabaouço linguístico e cultural da Índia há de se mencionar
os nomes de Jakob Hausegger, Archbish, Antônio Pimentel e Bernard Biscoping.
Outro nome que também
está associado a esta primeiríssima fase de descoberta do manancial
do sânscrito, agora já em meados do século XVII, é o do jesuita
Gaston Couerdoux, o qual fará pioneiramente menção em suas cartas
escritas para estudiosos europeus da época do Iluminismo, entre os quais
Bartholemy, sobre sua convicção a respeito do parentesco existente entre o
sânscrito, o latim e grego.
Será contudo a partir
de William Jones, orientalista poliglota nomeado como juiz da
emergente sede do poder colonial inglês na Índia, Calcutá, que de
maneira radical e consequente aprofunda-se o estudo do sânscrito.
Jones, que ao chegar à Índia já dominava não apenas o grego e o latim, como era de costume, mas igualmente o persa, o árabe e o
hebreu, e mais uma dezena de outras linguas e vislumbrou rapidamente
o tesouro linguístico e civilizacional que existia no subcontinente.
Seus estudos intensivos de sânscrito com vários Pandits locais o
capacitarão em breve a produzir a primeira tradução de uma obra
maior da literatura indiana em sânscrito: o ShakuntalA de
KalidAsa, sobre a qual Goethe pouco mais tarde teria o seguinte a
dizer:
Will
ich die Blumen des frühen,
die
Früchte des späteren Jahres,
will
ich, was reizt und entzückt,
will
ich, was sättig und nḧrt,
will
ich, den Himmel, die Erde, mit einem begreifen,
nenn`ich
Sakontala, dich, und so ist alles gesagt!
Dentre os méritos
desse visionário orientalista, William Jones, mereceu particular
atenção na linguística haver ele afirmado, em histórica
comunicação feita à Royal Asiatick Society of Bengal, em 1798,
haver um parentesco entre o sânscrito em outras linguas européias e
que as mesma teriam uma fonte comum:
"The Sanskrit
language, whatever may be its antiquity, is of a wonderful structure.
More perfect than Greek, more copious than Latin and more exquisitely
refined than either; yet bearing to both of them a stronger affinity,
both in the roots of verbs and the forms of grammar and so strong
that no philologer could examine the Sanskrit, Greek and Latin
without believing them to have sprung from some common source, which,
perhaps, no longer exists”.
Com tais afirmações
abriam-se as portas para o surgimento da linguística comparada,
pelas quais Franz Bopp e sua seminal obra Über das
Conjugationsystem, de 1816, haveria de adentrar.
Ainda nesta primera
fase da indologia, na qual os ingleses predominam antes que os
alemães passem energeticamente à frente, temos Charles Wilkins,
tido como o primeiro sanscritólogo a rigor, autor de uma importante gramática de sânscrito (1808), assim como de um primeiro
Sanskrit-English Dictionnary. Outro nome de destaque dessas primeiras
décadas foi H.T. Colebrook, autor de uma importante coletânea de Essays que
tratam de práticamente de todos os domínios da indologia, da
numismática à epigrafia, passando pela história, mitologia e
filosofia. Dentre esses há de se mencionar ainda J. Ballantyne,
autor da primeira tradução do Yogasutra, de Patanjali e de uma
tradução de uma famosa gramática concisa do sâncrrito pelo método
tradicional (ou quase) : laghu siddhAnta-kaumudI. Por volta
do final da década de 1820 esta dianteira inglesa perdia força e
brilho, o que ensejaria amargas observações de H. Colebrook, que em carta datada de 1830 lamentava o declínio
precoce dos estudos de sânscrito em Londres e Oxford.
Na França a indologia é impulsionada com a criação em 1814 de uma cátedra de sânscrito no Collège de France enquanto que na Alemanha tal se dá logo após a publicação da obra de Bopp, em 1818, com
os irmãos Schelegel como primeiros ocupantes. A partir da década de
1830 a linguística alemã avança vigorosamente em quase todos os
segmentos, não menos no do sânscrito, de modo que, a partir de
meados daquele século, obras lexicográficas de grande envergadura começam
já a despontar, tal como o monumental Sanskrit-Wörterbuch von
Boethlingk/Roth, a ser completado em 7 volumes entre 1852 e 1875. No
campo dos estudos gramaticais, farta produção se avoluma produzida por nomes como Delbruck, Wackernagel, Curtius, Rask e
dezenas de outros. A própria criptográfica gramática do maior de
todos os gramáticos indianos, PAnini, obra-prima de concisão e
abrangência, verdadeiro tour de force para qualquer tradutor, é
trazida pela primeira vez à luz também por Otto Böthlingk em 1887. Proximamente ao final do século,
começa a ocorrer uma preocupação cada vez maior em se escavar as
profundezas do legado gramatical nativo, o que representa mais um
passo em relação a certa desvinculação do eurocentrismo
predominante. Uma importante contribuição nesse sentido é o estudo
de Bruno Liebich: Zur Einführung in die indische Einheimish
Sprachwissenschaft (1919). A extraordinária riqueza gramatical do
sânscrito, assim como a imensa literatura que ele produziu num amplo
leque de campos de manifestação cultural, continuava deixando
perplexos os indólogos europeus, enquanto na Índia começava a
surgir uma geração nativa de sanskritólogos que traziam um tipo
particular de abordagem, mas rica e mesmo abundante, porquanto frutos
da contínua tradição de ensino do sânscrito, embora ainda sem o
rigor gramatical do Ociente. Dentre esses três nomes merecem
atenção, a saber, Belvakar, Bhandarkar e Kale. Da escola francesa
não poderia deixar de ser citado Louis Rénou, autor de uma tradução
do ASTdhyAyi em dois volumes e uma outra do gramático Hemacandra,
assim como uma Terminologie Gramaticale du Sanscrite e uma
profusão de ensaios, monografias e estudos gramaticais. Recentemente há de se
mencionar as contribuições de Staal, Thieme, Rocher,
Kunkuji Raja e Brough entre outros tantos. Os estudos de sânscrito no Ocidente enveredam
atualmente pelas áreas já desbravadas e trabalham sobretudo pelo
aprofundamento das variantes paradigmáticas.
Do pós-guerra para cá,
não obstante o recuo das vias tradicionais na moderna Índia
industrializante, cresceu enormemente em número os trabalhos de
sanscritistas nativos que não raramente ensejam um algo mais que de
resto sempre faltaria ao estudioso ocidental, algo que ecoa e
transborda em riqueza proveniente do legado linguístico herdade
naturalmente e de modalidades arquetipais que falam por si mesmas e
que agora são tratadas pela aparelhagem da linguística moderna.
II
A
TRADIÇÃO GRAMATICAL NA ÍNDIA
COMO
DISCIPLINA ESPIRITUAL
“Der Philosoph in den
Netzen der Sprache eingefangen” - Nietzsche- Das
Philosopherbuch)
A Chaim Samuel Katz,
amigo de longa data, primeira amizade verdadeira, primeiro incentivo intelectual.
A tradição gramatical da Índia perde-se na noite dos tempos, Segundo Belvakar, ela existe comprovadamente desde os tempos védicos, o que nos situa entre os séculos XI ou VIII e VI ou V A.C.: “The earliest speculations of a grammatical nature are to be found with the later portions of the Rig Veda itself”(1). Mas existem também os que advogam uma ancestralidade ainda mais prolongada, e se apóiam no fato de a linhagem de 10 gramáticos citados por PAnini ( séculos VII ou VI A.C ) remontaria a séculos anteriores, assim como a uma tradição oral não-comprovada historicamente, a de uma chamada Escola Aindra de gramáticos, os quais tinha o estudo da cabalística dos sons e das palavras . Segundo essa corrente, tudo isso levaria a tempos pré-védicos. Seja como for, é de fato no período védico que um primeiro ordenamento gramatical e particularmente fonológico começa a ocorrer, em particular com as etimologia do Yaska.
Seja
como, o importante é assinalar que a lenta, longa e extremamente
sólida construção de uma ciência gramatical na Índia sempre
esteve intima e organicamente vinculada aos vários puruSArtha –
metas de vida – da civilização indiana, a saber, o da superação
das falácias da mente, da ignorância das representações de si e
do mundo e o ascender a estados superiores de consciência. Inúmeras
correntes de saber e de práticas artísticas se prestarão à
obtenção desses objetivos, e dentre elas não menos a gramática do
sânscrito. Essas disciplinas “autorizadas”, ditas pramAnikas,
ou seja, genuinas fontes de conhecimento constituem modi
cognitivos que devem ensejar transformações ônticas, sempre
universalmente apoiadas pela prática de alguma forma de yoga, como
suele sempre ser na Índia. O estudo da gramática pelas vias
tradicionais é por conseguinte um marga
operacional
que trabalha sobre um aspecto do saber e carrega em suas imanências
um pressuposto de “transmissão” desde cima, pelo agenciamento de
um plano intermediário, o guru e a sadhAna correspondente.
No
caso da gramática, cujo monumento cânone, “descritivo-ortodoxo”
é a gramática (vyAkarana
, “desfazer/ndo através da análise”), de PAnine – o
Astadhyayi – e seus
quatro acessórios, o ponto de partida encontra-se na mântrica
destribuição do alfabeto do sânscrito, sua cabalística sonora,
revelada pelo deus Shiva: os MAheshavara Sutra(s).
Para
os hindus existe no mais profundo da consciência humana um anseio
latente por liberação das amarras da ignorância, para que aquele
substrato cósmico ali alojado – o atman- possa por fim
reintegrar-se à sua parte cósmica, Brahma, de onde ele adveio. O
termo para essa vontade é Mumuksha, uma formação secundária
a partir da reduplicação do desiderativo verbal da raiz muc,
da qual origina-se também Moksha, “Delivrance”, o *u*
recebendondo em seu lugar a vogal guNa correspondente, *o*.
PANINI
PAnini,
esse nebuloso nome ao qual se atribui a autoria do ASTAdhyAyI e dos
quatro acessórios, não enseja disputas quando se trata de afirmar
ter composto a mais perfeita e elaborada gramática que se tem
notícia na história da humanidade. Se a compararmos com alguns dos
monumentos gramáticas produzidos pela linguística alemã no século
XIX, três fatores contribuem para ratificar tal primazia: absoluta
concisão descritiva através de uma técnica de metalinguagem,
inaugurabilidade e originalidade. Bloomfield, o linguista americano
se refere a essa obra como “one of grteatest monuments of human
intelligence”.
PAnini codifica, normatiza, e instaura um campo de
saber através de cerca de 4 mil regras formuladas à maneira
algébrica, que funcionará desde então como matriz de uma
extraordinária civilização. Sua época terá sido algo em torno de
600 ou 500 anos A.C.
O
sânscrito da época de PAnini, após passar pela sua fase áurea do
período estritamente védico e ingressar num proto período de
especulação filosófica – Purva MimAnsa, Upanixades, etc –
começa a sofrer certa desagregação gramátical, na medida em que
formas verbais da lingua védica tornavam-se obsoletas – os
aoristas por exemplo- assim como um vocabuário em crise semântica.
Por outro lado, dialetos adjacentes, tais como o PrAkRit e o Pali
despontavam e eram usados cada vez mais frequentemente pelas novas
seitas religiosas que íam surgindo, tais como o budismo e o
jainismo. Panini surge com a sua gramática para colocar ordem na
casa e de fato ele foi bem sucedido, porquanto esta ingua bem acabada
refinada”- o Sam-s-krt
– tornar-se o latim de todos a intelligentsia indiana, fosse ela
hindu, budista, jaina ou carvaka
( materialistas ). Ela se prestará não menos como lingua dos
épicos – MahAbhArat,
RAmAyana
– e de grande parte da literatura indiana. Praticamente a
totalidade – com algumas devidas excessões – das centenas,
talvez beirando o milhar, de tratados de filosofia foi redigida nessa
lingua codificada por PAnini.
Uma
das outras partes do ASTAdhyAyI,
aquele que realmente inicia tudo e que está for a do corpus da
gramática, são os chamados MaheShavara
Sutra, a disposição
esotérica do alfabeto sânscrito, dispostas as vogais e consoantes
de tal forma em que o modus operandi de seu aprendizado enseja uma
tomada de consciência sonoro-cabalística diretamente relacionada
com a ciência mântrica – mantravidyA- cujo objetivo precípuo é
implantar no aluno uma experiência iniciática quanto aos valores
sonoros-energéticos que as vogais num primeiríssimo plano e a
seguir as consoantes possuem. Trata-se de instaurar desde logo no
discípulo a consciência dos fundamentos de todas as imensas
superposições que virão a seguir, das “dez mil coisas do mundo
“como diriam os daoístas.
Dentre
inúmeros outros, como suele ser o caso na Índia, dois
“gramáticos-linguistas”destacam-se num primeiro momento como
continuadores e comentatores dePAnini, KatyAyana e seus Varttikas
e o monumental
comentário entitulado MahAbhASya,
de Patanjali, que pode ter sido o mesmo que compôs o famoso tratado
YogasUtra.
De
fato, como costuma acontecer na história das idéias, políticas,
filosóficas, astronômicas e tantas outras, a hegemonia de uma
determinada escola não significa necessariamente que ela é a única
em seu tempo ou mesmo a melhor. No caso de Pânini e a tradição
estritamente gramatical e
espiritual que ele fundou, “ao que tudo parece indicar” tornou-se
soberana de pleno direito. Mas sabe-se que haviam outras linhas e
escolas já à sua época e mesmo antes, tais como a que se conhece
como Aindra
escola de gramática e gramáticos como Candra e Hemacandra. PAnini
mesmo cita em sua gramática 10 outros gramáticos cujas biografia e
legados desapareceram através das noites dos tempos, o que costuma
ocorrer com frequência na Índia.
Mas
a ciência da palavra como disciplina espiritual tornar-se-á objeto
de inúmeras escolas. A gramática do sânscrito permaneceu na Índia
um espécie de primus inter pares, o principal membro dos Vedas (
prathamAngam
), sobretudo junto à ortodoxia brahmanica e não é à toa que corre
o dito em sânscrito: mukham
smRtam tu vyAkaranam, ou
seja, dentre todas as linhas de transmissão a gramática é
aprincipal.
Filosofia dos sons
Os
14 aforismas da “pré-gramática paniniana, os Maheshvarasutras,
tidos como criados pelo deus Shiva com as batidas de seu tamborim –
o damarU – haveriam então de servir como ponto de partida para uma
variedade de abordagens yoguico-enérticas, filosófico-contemplativas
e puramente místicas não menos, para várias escolas tântricas da
tradição Agama.
O
Verbo Supremo éinicialmente apenas sonorização cósmica, vibração
musical elementar que traz em si informações que o logos deverá
depois por desdobramentos desencapsular. Os Vedas seriam então a
primeira grande codificação imagística e politéisticas desses
desdobramentos dos sons primordiais no plano do manifestado, nessa
interlocução conflitiva entre homens e deuses. Os Vedas - Rig Veda,
SamaVeda, Atharvaveda e Yajurveda – descrevem e prescrevem através
de injunções e fórmulas essa situação desagregada da condição
humana, de corpos orgânicos que abrigam e condicionam,
perecívelmente, uma alma que em sua ignorância precisa ser
esclarecida para saber-se na essência parte de uma ordem cósmica.
Ao restabelecer essa ordem, tentativamente, o homem está preservando
o Rta
( que aqui corresponde praticamente in totum ao conceito de Dao dos
chinêse ) e reintegrando-se à ordem própria do universo. Portanto
a recitação dos textos védicos possui uma cad6encia com intonações
e uma métrica rímica e rítmica rigorosas. Um dos objetivos é ir
treinando o corpo e amente àquela consciência rítmica original,
cósmica, que a ciência/arte dos dos sons, dos mantras tenta
resgatar. Dessa visão iniciática, inaugural védica, uma profusão
de correntes da filosofia da palavra-som haverão de surgir pelas
mais variadas vertentes.
3- Período Clássico
Aquilo
que a taxonomia se arvora classificar como período clássico da
filosofia da gramática possui um penchant certamente mais
exoterista, à la moyenne, porquanto se mantém fortemente adstrita à
ciência gramatical estrito senso.
Três nomes se destacam de acordo com as
classificações acadêmicas: BhatRhari ( primeira metade do século
V da era cristã), Mandanamishra ( século VI ) e Abhinagupta ( fins
do século X e princípios do XI), sem qualquer sombra de dúvida
gigantes cada qual em sua própria modalidade.
A
obra central de BhatRhari é o tratado conhecido como VakyApadIya,
texto inteiramente consagrado à filosofia da palavra, ao percurso
linguístico-depurativo das falaciosas representações que temos do
mundo rumo à retomada plena da consciência da palavra suprema –
vAk
– como sendo o Brahma, a entidade suprema. Portanto, o estudo da
gramática é via de retificação e dedepuração cognitiva através
da sintaxe correta, o que lembra em muito a abordagem de um
Wittegenstein, mas provida de uma metafísica.
Dentre inúmeras passagens que enfatizam esta visão
filosófica da importância da gramática e da palavra, cito esta:
Asannam brahmanastasya tAm uttamam tapah
prathAmam chandasAm angam Ahur
vyAkaranam buddhah!
PrAptarUpavibhAgAyA jyitish
tasya margo 'yam Anjasah.
Próxima do Brahma Supremo ela é a ascese superior
e
como o primeiro membro dos Vedas ( Chandah
) a
consideram os sábios.
Esta essência soberana da palavra,
dotada de formas diveras, luz santificada
é
a via direta rumo ao Supremo!
VAkyap.
I, 13
A filosofia da
gramática como via espiritual e de profilaxia linguística de
Bhatrhari incorpora, como suele na Índia, vários fragmentos de
abordagem filósofica do seu Zeitgeist, provenientes entre outros do
budismo e da filosofia vedantina. Mas a visão de Bhatrhari é
ancestral e a postura “agâmica”, ou seja, a que reivindica a
mais alta proveniência e ancestralidade de sua escola-abordagem
linguística aponta CandrAcharya como aquele que teria resgatado
aquela transmissão/revelação inaugural. A palavra-mantra possui
uma essência ( shabdatattva), uma espécie ousia metafísica,
e esta essência é Brahma, sua origem última não manifestada:
AnAdinidhanam brahma
shabdatattvam yad akSaram
vivartate 'rthabhAvena prakriyA
jagato yatah.
Ó
Brahma , sem começo nem fim
essência da palavra, a qual imperecível
manifesta-se com os objetos/sentidos
no
mundo.
VakyAp. I.I
Esta
abordagem dicotômica, palavra (shabda)/brahma,
estará presente sob variadas formas e nuances em todas as linhagens
de filosofia da linguagem na Índia. Shabda
significa em sentido estrito gramatical, o aspecto externo, forma(l)
de uma idéia, mas em algumas abordagens, como em Abhinavagupta, ele
adquire o sentido de instâncio-logos suprema.. Para os tântricos a
dicotomia se faz com shabda/shakti, etc. Portanto, a consciência
precípua da vinculação hierárquica entre o plano da essência
invisível e sua forma manifestada gráfica e sonoramente é
universal nas escolas dualísticas, advaita e muito sobretudo nas da
filosofia da palavra. Goethe aludiu certa feita a essa indissolúvel
relação: Das Schein, was wäre es ohne das Wesen, und das Wesen
ohne das Schein” ( citado por Hegel em Die Phänomenologie
des Geistes).
SphoTa
Mandanamishra
é tido como um dos mais importantes defensores da teoria do sphoTa (
literalmente: eclosão, “rebento”), segundo a qual os sons são
imbuídos de alusões ao sistema vibratório do universo, as palavras
sendo apenas o revestimento externo, tal qual o corpo humano é
apenas uma carcaça perecível que reveste – e aprisiona – algo
eterno, o atman, o prANa,
etc. Segundo John Brought, importante estudioso das teorias
linguísticas indianas, a teoria do sphoTa
defendida por seus intérpretes outorga ao conceito a função de
portador semântico, ou como diriam os alemães Bedeutugsträger.
Em
texto antológico, o Sarva-Darshana Samgraha,
de Madhava, a teoria do spotA é descrita como defensora de uma
apreensão estrutural, monadicamente em si fechada, uma
unidade-sentido da palavra ou mesmo de uma frase, e não deveria
jamais ser fatiada em sua sequêncialização fonética ou fonêmica.
Trata-se, portanto de alçar-se
a um conceito-idéia e não se deter em particularidades adjacentes,
o sphoTa é a eclosão
na consciência de um sentido em textos pramânika(s)
( autorizados ) e consagrados pela sacralidade da tradição como
palavra manifestada. Tanto para AudumbarAyana quanto Varttaksha,
representantes desta escola, o yogin-sAdhaka possui imanente em seu
espírito tão somente a idéia
da essência semântica das palavras, forma externa que atua como
upaya.. Uma outra tipologia da tradição gramatical indiana dentre
de seu âmbito mais filosofal e esotérico, faz uso do par dhvani
e artha (
som e sentido ), que passará a ser amplamente utilizado a partir do
século IX e X da E.C. Quando utilizadas pelos gramáticos estrito
senso, esta dicotomia em muito se aproxima dao par langue/parole
do linguista suiço de Saussure, na medida em que a parole, assim
como o dhavani são necessariamente efêmros e contigenciais, mas a
langue porta um ( mutável para de Saussure, porquanto historicamente
passivel de variação semântica ) valor mais estável, tal como o
artha,
para os indianos. A esse propósito cabe de bom tamanho uma passagem
do vAkyapadya:
AdyantAntantargatAnantavAyavAcakanirbharam/
rahasyam
mantramudrAnAm prapadye 'nuttaram mahah//
Recorro
aos segredos dos mantras e dos mudras, à grandeza
suprema
que contêm o significado e o significando infinitos
presentes
tanto no começo como no fim!
Essa escola de filosofia da palavra choca-se,
contudo,quase que diametralmente com a visão das palavras como
mantras, sons eternos a serem pronunciados corretamente – como no
caso dos Vedas – e representam por si só, tão somente como
re-vibração de sons primordiais, uma verdade superior àquela que
os sentidos poderiam ter. Aqui sem dúvida uma contradictio in
adjecto ocorre e que aponta para certas cisões fundamentais entre a
tradição Agama de ascendência estritamente védico-brahmanica e
aquelas advindas da tradição shaiva.
Em termos de linguística, o surgimento da teoria do
sphoTa representou sem dúvida um grande salto. Ela receberia
aplicações as mais diversas, como por exemplo aquelas da gramática
do sânscrito em um BhTToji-DIkshita que concebeu um sphoTa
para as letra – varNa-sphoTa, um para as palavras completas
(padasphoTa) ou mesmo para a frase, vAkyasphoTa.
Na teoria poética ela influenciaria a obra de
Anandavardhana e pouco depois o próprio Abhinavagupta.
Abhinavagupta
Abhinavagupta
( séculos X e XI da E. C) é visto como um gigante da Idade Média
indiana. Poeta, esteta filósofo de espírito enciclopedístico sua
obra encontra-se insirida dentro da tradição do Shivaismo do
Kashmir. O Verbo, visto como entidade suprema, há de ser alcanádo
em sua plenitude de significados a partir de percurso de quatro
etapas, ou vice versa, o Verbo Supremo descende ao plano do
manifestado numa sequência de quatro etapas ( o que evoca as quatro
etapas de manifestação do dragão, na mitologia esotérica
chinesa). Num primeiríssimo momento o Verbo Supremo encontra-se
não-manifestado, imóvel, por ssim dizer em pleno samAdhi
– êxtase! Essa é a etapa primordial- parA!
Na segunda etapa ou estágio ele é pashyanti ( que a rigor é a 3 p.
do pres. Verbo ver dRS
), quando ele inicia sua participação no plano do manifestado. Na
terceira fase, madhyamA
(
“intermediária”) ocorre a absorção do prAna
primordial, aquele que insufla vida às palavras e, por fim a fase de
manifestação de sons e sentidos através da articulação verbal-
vaikharI.
Uma vez mais torna-se supérfluo repetir que é tão somente através
das variadas práticas de meditação do yoga que tal visualização
de etapas se faz possível, coordenadas pela orientação dos
pressupostos da escola. Mas Abhinavagupta é inaugural em certas
particulariades, muito especificamente quanto essa quadripartite
exposição, embora dentro de uma eixo epistêmico já existente.
Aqui Brahma como entidade primordial mantém plenamente seu estatuto
pós-védico.
Para
Abhinavagupta e outros dessa linhagem, tais como Nandikeshvara e
KrshnamAcharya, o emprego de técnicas yôguicas específicas visando
o aprimoramento da shakti subjacente ( que aqui adquire
extraordinária semelhança com o cultivo do qi original pelos
daoistas ) tem como telos,
artha a
expectativa de visualização da entidade suprema (brahma, ou por
substituição shiva) Bindu
(literalmente
“gota”, ponto de interseção) e nAda
( canal, via ) são igualmente conceitos-operacionais chaves.
O Mantra
O
mantra, som-vibração significante sagrado, é um dos sustentáculos
da tradição tantrica. Além do aspecto inaugural litúrgico,
proveninete já desde os Vedas, um outro inserido dentro das
especulações da filosofia da linguagem, ele exerce uma função
operacional nas técnicas de recanalização energética, mais
específicamente a do “despertar” através de sua repetida
articulação sonora a energia da kundalinI adormecida no chakra da
base da coluna vertebral- mUladhara.
A
palavra mantra provém ironicamente da raíz verbal pensar
(man) e
é formada com o auxílio do prefixo * tra* ( Panini,
III,2, 183) possuindo o
significado “exotérico” de “forma
( sonora) que se presta a usos diversos”. Os mantras são tidos
como e destinados a ter valor/função hipostática, ou seja, são
capazes não apenas de evocar e atuar sobre “realidades”, mas
igualmente gerá-las, * substanciá-las*. A shakti do
mantra não encontra-se apenas em sua dimensão primeira, a sonora,
mas igualmente na correspondência de sentido oculto com a realidade
não visível, ou mesmo manifestada do mundo, visto aqui como
provindo de sequências de mundo aos níveis micro, mas em absolua
concordância com os planos macro.
Os
defensores da perenidade do verbo supremo – toda linhagem agâmica
proveniente dos Vedas e das escola de ascendência
brahmano-mimânsika, postulam em combate às visões mais “exotéricas
“dos gramáticos e adjacências, que não obstante o som da
articulação fonológica ser transitório, o som real que é nele
imanente, aquele associado ao significado/sentido/correspondência
vibratória da palavra é eterno, da mesma forma que o um jarro não
visível num espaço escuro, encontra-se ali, mas não é visível
por falta de luz e contudo uma vez iluminado torna-se visível,
voltando a não sê-lo uma vez retirada a luz que o iluminou; mas o
jarro sempre existiu ali onde estava. A idéia/compreensão central
aqui é correlata àquela da anterioridade, tal como será explorado
nos upanishades, por exemplo no Kenopanishad,
a saber, trata-se de saber que existe aquilo que ocasiona o ouvir da
audição, o ver do olhar, o pensamento do pensar...
A
partir da disposição das letras do alfabeto sânscrito no
MaheshvarasUtra, os cabalistas tântricos de variadas escolas
começara a estabalecer correspondências entre as letras e certas
regiões e sobretudo chakras do corpo humano. Essa ciência do
mantra, mantravidyA.
Mas
já em seu momento absolutamente inicial, capsular, a saber, o das
três vogais fundamentais – *a*, *i* e *u*
- tem-se
o primeiro momento/visão da ciência esotérica do mantra: o a
é
produzido na garganta com esforço articulatório praticamente zero e
por isso representa o conhecimento transcedental (
vidyA)
, o
brahma supremo. O
i, uma
palatal, representa/simboliza a vontade (
icchA)
de manifestação ( mas também o potencial retorno ao a,
que
é conhecimento puro; O
u é
bilabial e representa/simboliza a ação (kryA).
Portanto,
o saber inicial oculto ao qual se retorna, a vontade e a ação, o
tripé da cabalística tântrica.
A
escolástica e especulações gramaticais
Numa
vertente de caráter mais adstrito à gramática tradicional e sua
filosofia imanente da palavra, o papel de certos gramáticos ditos
“pragmáticos, “tais como BhaTToji DIkshita , KondabhaTTa e
Nagesha, todos já tardios e situados entre os séculos XIV e XVII de
nossa Era, constituem uma vertente escolástica, “exotérica”da
tradição gramatical e suas abordagens místico-filosóficas. Alŕm
de Panini, todos se apoiam solidamente no MahAbhAshya de Patanjali no
Varttika de KatyAyana. Outro texto de filosofia gramatical e exegese
de extrema importância é o Kashika,
de autor desconhecido. Além de seu bem-sucedido siddhAnta-kaumudI
(
e sua versão ainda mais abreviada, o laghu
siddhanta-kaumudI),
BhaTToji legou-nos ainda um importante tratado, embora incompleto, o
Shabda-kauSTubha, cuja arquitetura lembra em muito o Kashika.
KondabhatTTa
é conhecido sobretudo por seu volumoso tratado sobre sintaxe, e é
por essa razão bastante original porquanto essa área da gramática
do sânscrito sempre foi relegada. Existe também dele um estudo
sobre a filosofia da gramática numa fatura uma vez mais tipicamente
do MahAbhAshya.
NagojibhaTTa
( século XVII) é considerado por alguns linguistas indianos como o
mais importantes dentre os acima citadas da tradição gramatical
escolástica. Sua obra constitui um tour de force no sentido de
conciliar a exegese escolástica e as teorias do verbo supremo tanto
da tradição Agama, cujo referencial-vetor são em ultimas instância
os Vedas, quanto daquelas de ascendência shaiva que vão desembocar
em várias escolas, dentre as quais a importante do shivaismo do
Kashmir. Atribui-se a NagojibhaTTa, ou Nagesha como é também
conhecido, cerca de 14 tratados sobre o Dharma, um sobre o Yoga, três
sobre teoria literária e alamkAra ( estilística ) assim como cerca
de 12 pequenos tratados gramaticais. Dentre esses o mais conhecido é
vaykaranasiddhAntamanjusA
( “Repositório das Doutrinas dos gramáticos) que reune estudos
daquilo que poderíamos dsignar lato senso como linguística geral,
epistemologia e mesmo semântica.
Bibliografia:
-Belvakar,
R. G. Systems of
Sancrit Grammar.
Poona: 1915.
-Burnell, B. On the Aindra School of Sanskrit
Grammarians. London: 1891.
- Jacobi, H. Beiträge zur Literaturawissenschaft und geistgeschichtliche Indiens. Bonn: 1926.
- Bloomfield, L. Language. London: 1913.
- Chakravarti, S. The linguistic speculations of the Hindus. Calcutta: 1930.
- Ruegg, D.S. Contribuitions à l'histoire de la linguistique indienne. Paris: 1961.
- Brought, J. I Ching on Indian Grammarians, in Journal of the Scholl of Oriental and African Studies, 1974.
- Brought, J. Theories of General Linguistics in the sanskrit grammarians, in Transactions of the Philological Society, London, 1951.
- Baranikov, A. P. Elementi sravinitel'no-istoritcheskovo metoda v indologitcheskoi lingvistitcheskoi traditsii, in Voproci jazikosnanja, nr. 2 Moskva, 1952.
- Bhatrhari. VakyapadIya, com. Punyaraja. VarAnasI: ChowkhambA, 1887 ( reed. 1967 ).
- Kunjunni, R. Sphota, the Theory of linguistic symbols. Adyar: Adyar Library Bulletin, 1956.
- Bhattoji-Dikshita, Shabda-KauStubha. VarAnasI: Chowkhambha, 1993.
- Avalon, Arthur. La Puissance du Serpent. Paris: Dervy-livres, 1950.
- Strauss, O. Altindische Spekulationen über die Sprache und ihre Problem, in Zeitschrift der deutschen morgendländische Gesellschaft. Berlin: 1927.
III
PANINI E A ESTRTURA DO ASTADHYAYI
Goldstücker has admirably attacked Boethlingk,
but for Boethlingk we forget Goldstücker;
Whitney has admirably attacked Panini,
but for Panini we forget Whitney.
I adore Boethlingk because he reveals to us Panini.
I adore Panini because he reveals to us the spirit of
India.
I adore India because it reveals to uas the spirit, the
Spirit”.
( Faddegon, Studies on Panini`s Grammar).1
O ponto de partida para a metodologia expositiva da
gramática de Panini, o ASTadhyAyI, ou os “Oito Capítulos”,
encontra-se nos 14 aforismas ou sutras iniciais do chamado
MaheshvarasUtra. Ali, as letras do alfabeto sânscrito são
organizadas pelo expediente metalingínguistico conhecido como
pratyAhAra, o qual percorrerá como um fio ( sUtra )
ininterrupto todos os cerca de 4.000 aforismas que compõem a obra.
A técnica metalinguistica do pratyAhAra tem,
portanto, seu ponto de partida nos Maheshvara(s) e dali servirá como
modelo operacional para a técnica paninieana de formulações
prescritas. Ela consiste em *condensar* os fonemas uma regra
prescritiva dentro de um espaço que tem por fonema final um
anubandha ( definido por PAnini em I, 3, 2 ), ou seja,
uma letra fictícia que deverá ser eliminada quando da aplicação
daquela regra em questão. Assim, quando PAnini prescreve iko
yanaci (VI, 1, 77) o primeiro momento de padaccheda (
reconstrução analítica do sentido sintático, explicitando a
relação condensada criada seja por sandhi ou samâsa ), a saber,
que iko corresponde ao gentivo ( ikah) yan no
nominativo e aci no locativo. A seguir, e aqui entra a técnica
do pratyAhAra propriamente, ele deverá identificar iko como
os fonemas i, u e R, sendo o k um anubandha, ou seja, posto
ali provisoriamente e é destituido de qualquer valor aplicacional.
Yan abrange por sua vez os fonemas y v r e l
( o n final sendo anubandha e portanto sem valor. Ac (
que no locativo será aci ) abrange os fonemas de *a*
(inclusive ) até *au* ( ou seja: a, I, u, R,
l, e, o, ai, au. E assim por
diante.
Um outro exemplo para melhor elucidar a técnica,
extraído agora do próprio corpus do ASTAdhyAyI: em IV, 1,
2 PAnini enuncia todos os sufixos referentes às declinações:
svaujasa
mautchastAbhyambhisnebhyasnsibhyAmbhyansosAnbhyossup,
enunciado que submetido à reconstrução, à expansão de sua
modalidade elíptica, condensada e “pratyahárica”, deverá ser
assim lido, num primeiro momento: su,
au,
jas ( nominativo singular, dual e plural ); am, aut jas ( nominativo
singular, dual e plural), etc e assim na sequência. Portanto, a
seguir, ao longo da gramática, toda vez que PAnini usar SUP, ele
estará fazendo menção por meio deste pratyAhAra a todos aqueles
sufixos incluídos naquele longo sUtra, excluindo o último fonema
que é anubandha. Exemplo complementar: em I, 4, 14 é prescrito
Suptinantam
padam,
o que literalmente significa “(chama-se ) pada
( palavra completa, ou seja, com as devidas desinências) é tudo
aquilo que contiver sup,
tin
(
um outro pratyAhAra
que prescreve os sufixos verbais) em seu fim ( antam ). Portanto um
pada, uma palavra que está pronta numa frase é aquela que recebeu (
após passar por vários outros processos de formação ou não a
partir da raíz verbal) sufixos seja da conjugação (tin) seja das
declinações dos casos (sup)!
Caberia
aqui uma indagação: mas como é possível que seja prescrita a
definição de pada
com
menção aos pratyaharas sup
e tin
em I,4, 14, quando estes são tratados apenas bem mais adiante, em
IV, 1, 2? E é aqui que entra a questão fundamental do krama,
a ordem sequencial pedagógica que vai pinçando em ordem
aparentemente aleatória a verdadeira equência *pedagógica * do
método tradicional e não daquele “arranjado”sob outro prisma, o
da sequencialidade lógica.
Portanto
tal é o espírito de concisão eloquentemente típico em Panini e em
geral utilizado em apla escala pelo estilo sUtrico em outrois campos
de saber. Em Panini trata-se como se fosse de uma sequência de
matrioshki
de regras gramaticais, uma encapsulação contínua de caráter
normativo. E esse imperativo de concisão é tão comum entre os
gramáticos que corre o dito: ardhamAtrAlAghavena
putrotsavam manyante vayAkaranah,
ou seja “ uma meia medida de vogal curta que não possa ser
realizada é considerada pelos gramáticos em impportância à
gestação de um filho”!
A extraordinária
originalidade, brevidade e abrangência da gramática de pAnini segue
ensejando torpor nos meios linguísticos e muitos vêem nela a
precursora das abordagens vigentes da teoria da comunicação, dos
limites do reducionismo do campo semantico nos enunciados semióticos,
etc. Esta técnica pAniniana de prescrever fatos gramaticais que se
chocam em aparente contradição e que são mais adiante resolvidos
num outro nível por um outro tipo de sUtra, conhecido também como
Jnapakasiddha, foi objeto de estudos desde a época de Kierlhorn e
Boethlingk, ainda na segunda metade do século XIX e foi
caracterizada por Bourdon, em arti'absurde”!
Vejamos agora alguns tipos de
sutra(s) prescritivas que nos guiam como fios condutores que são
através dos labirintos do sistema. Na abordagem tradicional essas
sUtras são em número de seis.
ParibhAsha
-
régra/fórmula de interpretação genérica, que ocorre nos
primeiros capítulos do A. e é amplamente usada pelos comentários
cânones. Funcionam como regras de auxílio na compreensão quanto à
correta aplicação de certas regras. Os paribhAsha
sutras se dividem em dois tipos, a saber, a) aqueles que são obtidos
por inferência, lingavAti,
e aqueles que se aplicam
restritamente a uma regra, vidhau
niyama kArinI. ShrI
GopAla ShastrI define este sUtra como aquilo que limita o que se
apresenta como ilimitado nas regras de prescrição
específica(vidhi): avyavasthAyAm
vyasyyA-sampadAkam sutram paribhAshAsUtram.
Patanjali descreve este tipo de sUtra como uma vela num quarto escuro
ilumina os objetos mais próximos.
Vrddhi
- chamada aquele sUtra-regra prescrita por excelência, ela ensina
genericamente tal ou tal fato gramatical e segue válida como um
farol, “à excessão daquelas instâncias onde tem validade uma
regra proibitiva, pratisheda”
( prasangasâmarthyàd
vidhir bhAvisyaty anyatra pratisedhavisayât
-MAhAbhAshya. I 1 44 );
Vinimitta
- régra
que possui causas diferentes daquela que imediatamente precede numa
sequência dada.
Vipratisiddha
– tipos
de régras que se opõem mutuamente em contradição que será
resolvida mais adiante. “Ficar no ar uma salutar consciência
crítica em estado de epoxé no espírito do estudante”.
Adhikara
-Régra
autoritativa, rubrica governate, que introduz algo de importante e
guia;
E assim por diante.
A
ESTRUTURA DA GRAMÁTICA
O corpus propriamente dito
do ASTAdhyAyI ( aSTa, oito + adyaya, capítulo,
o *I* sendo um sufixo de formação nominal feminina) é composto de
Oito Capítulos, cada qual dividido em quatro seções, ou pAda(s).
Considerável número de padas do primeiro capítulo é dedicado às
definições de termos técnicos a se tornarem operacionais no
decurso da obra. Vejamos alguns exemplos:
1,1,1- VrddhiAdaic- At
(a) , ai, e au ( serão designados como ) vrddhi,
“expansão” ( das vogais/fonemas primários ).
1,1,2-
Adengunah
– a,
e,
o
são
guNa
( vogais de qualidade, um grau de expansão por coalisão: a + a = A;
a + i = e;
a + u = o).
No início do terceiro pAda é
definido o conceito de raíz verbal:
1,3,1 – Bhuvadayo dhatava.
Bhu e outras ( cerca de 2. 000 ) são ( designadas ) raízes verbais
( dhAtu).
1,3,2 – Upadeshe ajanunAsika
it. Numa formulação do tipo upadesha ( régra de instrução
doutrinal: upa desha ) o AC ( ou seja, os fonemas vogais em
geral), sendo nasais ( anunAsika) devem ser vistas como IT, ou
seja, a serem eliminadas.
1,3,3- Halantyam – HAL (
pratyAhAra que engloba todas as consoantes) deverão também ser
consideradas IT quando forem finais (antam) de uma enunciação.
Uma outra técnica paniniana é
chamada de anuvrtti, “recorrência”, segundo a qual tem
lugar um retorno continuo, parta niveis de abstração e
aprofundamento cada vez maior, de tal ou tal valor prescritivo,
estabelecendo, e aqui está o ponto-chave, uma relação orgânica,
quase-circular na fenomenologia de interação dos variados tipos de
regra com o próprio arcabouço do sânscrito como tal, como uma
lingua já existente por si só.
Praticamente todos os sufixos do sânscrito são
tratados entre os capítulos III e V, parte esta da gramática que
segundo muitos, tais como Rénou, é a mais consistente de toda a
obra.
Os
sufixos (pratyaya) de todas as espécies sãos os elementos
incorporados à parte final de uma raiz sendo construída para se
tornar um pada, ou seja, com os infixos, duplicações, elipses,
Umlaut, etc, etc. Esses pratyaya(s) ( III,1,2 ) são agrupados em
cinco categorias.
- SUP- aqueles referentes às declinações;
- TiN – sufixos verbais em formações conjugacionais;
- Krt – sufixos de formação primária- particípios, gerúndios, gerundivos, etc.
- Taddhita – sufixos de formação/derivação secundária, a vasta maioria de substantivos e adjetivos.
Fogem à ação desses sufixos
os indeclináveis (avyaya), conjunções, preposições,
advérbios e as partículas exclamativas.
DhAtu, raíz verbal e
pratyaya, sufixos, dois elementos-chaves na compreensão da visão
gramatical indiana. E a tal ponto foi adada continuamente atenção
precioua a tudoque gire em torno desses dois conceitos gramaticais
eque a sintaxe sempre foi neglihenciada pelos gramáticos. Para os
gramáticos indianos a raiz verbal contém uma ess6encia do fenômenos
linguístico de importância intergiversável. A raíz verbal
significa não apenas a matéria bruta a ser por etapas trabalhada
até se tornar uma palavra completa na frase, um pada, mas igualmente
traz em si, dentro do antigo e espírito védico e brahmanico da
filosofia da palavra, um sentido transcendental. Rocher assim definiu
essa importância outorgada à raiz verbal: One of the greatest
merits of Indian grammarians consists in that they considered the
words used in the language as composite aggregates which could be
divided in separated parts (...) Within the analysis elaborated by
the indian grammarians the central and most important element is, no
doubt, the verbal root, dhAtu, both from the morphological and
semantic points of view” 6
O
tratamento dos KAraka ( casos, em número de oito ) tal como
praticado pelos gramáticos nativos foi objeto de severas críticas
por parte de linguistas normativos tais como Whitney, mas os
trabalhos recentes de Rocher, Thieme, Staal e Cardona têm sido
capazes de contornar esta visão ortodoxa ocidental em nome de uma
“lógica” interna que está organicamente ligada ao próprio
Weltanschauung indiano, a gramática sendo apenas um instrumento de
endereçamento do homem em seu caminho em direção à liberação
das amarras do mental e do corpo ( moksha).
A última parte do ASTAdhyAyI
trata das leis da concatenação eufônicas e dos tipos de samAsa, os
chmados compostos de palavras imbricadas, assim como dos advérbios.
A propalada idionsicrasia da
ordem interna do A. causa sem dúvida muito desconcerto. Alguns a
descartam como produtiva in totum, como Whitney e adeptos, outros
contestam a total adequação para a eficácia do aprendizado, como é
caso dos próprios gramáticos nativos da linhagem de um BhaTToji
Dikshita, enquanto que os tradicionalistas da mais estricta paramparA
defendem um esoterismo imanente e intencional que visa com que o
discípulo percorra, devidamente orientado, a silva oscura dos
inúmeros atalhos, ou, como poderia ser expresso em oura metáfora,
eles têm descobrir o tesouro por meio de ir cavando fundo em várias
direções. Louis Rénou fala de “une manière brusque” de
passagens nessa ordem tradicional (krama).
Minuciosa e amplamente
completada pelos exgetas KatyAyAna e Patanjali, em seus respectivos
VArttika e MAhAbhAshya, o ASTAdhyAyI. tornou-se
o vetor-mór de tudo mais que fosse objeto de especulação ou
investigação linguística, de tudo mais que, dentro do imenso
universo que tinha o sânscrito como lingua franca para o intercâmbio
intelectual, hindus, budistas ou jainas, tal qual o grego no período
helênico e bizantino e o Latim na baixa e alta Idade Média e em
certa medida o inglês atualmente. Quando se tratava de saber qual a
regra correta era no tripé dos três muni(s) – os três sábios-
que se recorria, mas muito mais especificamente ainda nos Oito
Capítulos de Panini e seus cerca de 4.000 sutras.
H.
Robin assim se refere à importância desta obra em seu A
Short History of Linguistics:
“Indian linguistics was not historical in its orientation, though
its roots lay in the changes languages undergo in the course of time.
But the topics covered by modern descriptive linguistics...
semantics, grammar, phonology and phonetics are all treated at length
in the Indian tradition”. 12
A metalinguagem concebida por
PAnini para efeitos de suprema concisão em seu método
prescritivo/descritivo tinha sem dúvida em mira o tradicional
processo de memorização. Sem dúvida alguma que a escrita já era
existente na Índia de sua época, porquanto, à diferença dos
épicos de Homero, em que se possa considerar uma tradição oral que
foi recebendo interpolações de vários tipos, o método estrito
paniniano, em que cada “vogal que não puder ser encurtada tem a
importância semelhante ao jascimento de um filho”, só poderá ter
sido elaborado através de uma escritura. Embora não esteja
preocupado com a cadência recitativa do texto para efeitos de
memorização, muito embora as leis de concatenação eufônica e o
espírito geral do estilo sútrico peçam naturalmente um pouco por
isso, os 4.000 aforismo eram e são destinados à memorização, fato
de modo algum icomum para a expandida memória oriental. O
chela/shishya é induzido a ir memorizando, já a partir dos
10 ou 12 anos de idade, todo o corpo da obra antes que efetivamente
possa compreendê-la e quando estiver jáingressando no domínio mais
aprofundado do aprendizado ele “sacará”da memória com
facilidade este ou aquele sutra evocado pelo Pandit e trabalhará
mais facilmente sua compreensão momentânea e futura, porquanto já
memorizado.
A
gramática de PAnini foi objeto de três traduções em linguas
ocidentais, e pelo menos uma em japonês. A primeira dessas foi
realizada pelo renomadíssimo sanscritólogo e lexicógrafo
russo-alemão Otto von Boethlingk e publicada em dois volumes em
1887. Extraordinário monumento de erudição e de desafio
intelectual, a versão impõe ao leitor uma carga não raramente
extenuante de acessórios eruditos. A primeira tradução em inglês,
de 1891, foi proporcionado por Vasu e inclui o importante comentário
de BhaTToji Dikshita, cujo famoso SiddhAnta Kaumudhi seria igualmente
traduzido por ele. A terceira e mais perfeita editorialmente é a de
Louis Rénou, importante sanscritólogo especialista em gramática
tradicional, e data de fins da década de 40: La Grammaire de Panini.
Em Hindi existe a extraordinária versão de Brahmadatta JiJNAsu,
publicada lá pelos idos da década de 60 e início da de 70, em três
volumes, mas cujo terceiro volume é impossível de se achar. Nesta
última versão, o autor produz um completo padacheda
em
Hindi.
As mais recentes tendências
nos estudos paninianos exploram abordagens da gramática geracional e
mesmo modelos matemático-computacionais para cruzar estatísticas
de insidências, etc.
Bibliografia Seleta
Faddegon,
B. : - Studies
on Panini`s Grammar.
1955.
-The
mnemotechniques of Panini's Grammar. 1956.
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devices on Indian Grammarians,
1887.
- KatyAyana
and Patanjali- their relation to each
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and to Panini.
Bourdon,
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raisonnement par l'absurde,
Journal asiatique, 1938.
Renou,
Louis: - Les
transitions dans la grammaire de Panini,
Journal asiatique, 1953.
Rocher,
Rosanne: -
The Concept of Verbal Root in Indian Grammar.
(Foundation of Languages), 1969.
- Agent et object chez Panini, in JAOS, 1964.
Thieme,
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- PAniniya
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Varanasi, 1975.
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American Philo. Society, 1971.
Goldstücker,
Theodor: - Panini
and his place in sanskrit literature.
London: 1860.
Müller,
Max: -
History of Sanskrit Literature.
London: 1859.
Mishra,
V.N. : - Panini`s
grammar as a mathematical model.
Indian Linguistics, -
Staal,
Fr. : - Euclides
and Panini,
in Philosophy
- Syntatic
and semantic categories in Panini,
Foundation of Language, 1969.